Gil Braltar (Parte 5)

O perigo no exterior não era menor. Ao que parecia, alguns soldados haviam podido se reunir na Porta do Mar e avançavam em direção à casa do general. Vários disparos foram ouvidos nos arredores da Main Street e da Praça do Comércio. No entanto, o número de símios era tal que a guarnição de Gibraltar corria perigo de muito em breve ver-se obrigada a ceder posições. E então, se os espanhóis fizerem causa comum com esses macacos, os fortes seriam abandonados, as baterias ficariam desertas, as fortificações não contariam com um único defensor, e os ingleses que haviam feito inacessível aquela rocha, não voltariam a possuí-la jamais.

De repente, ocorreu uma brusca inversão nos acontecimentos.

Em efeito, à luz de algumas tochas que iluminavam o quintal, pode-se ver os macacos saírem em retirada. À frente do grupo ia seu chefe brandindo seu bastão. Todos o seguiam no mesmo ritmo, imitando seu movimento de braços e pernas.

Gil Braltar pode se desamarrar e escapar do quarto onde se encontrava prisioneiro? Não havia dúvida que era possível. Porém onde iria agora? Para a ponta da Europa, onde morava o governador, a fim de atacá-lo e forçá-lo a se render, como fez com o general?

Não! O louco e seu bando desceram pela Main Street. Depois de cruzar a Porta da Alameda, marcharam obliquamente através do parque e começaram a subir a encosta da montanha.

Uma hora depois, na vila não restava sequer um dos invasores de Gibraltar.

O que havia ocorrido, então? Logo se soube, quando o general Mac Kackmale apareceu no limite do parque.

Havia sido ele quem, desempenhando o papel de louco, havia se coberto com a pele de macaco do prisioneiro e havia orientado a retirada do bando. Parecia tanto com um quadrúpede, este bravo guerreiro, que conseguiu enganar os macacos. Assim foi, não tendo outra coisa a fazer que aparecer e todos o seguiram.

Simplesmente uma ideia genial, que logo foi recompensada com a concessão da Cruz de São Jorge.

Quanto a Gil Braltar, o Reino Unido deu-o em troca de dinheiro a um Barnum que fez fortuna exibindo-o nas principais cidades do Velho e do Novo Mundo. O Barnum ainda diz de bom grado que não está exibindo aquele selvagem de São Miguel, mas sim o general Mac Kackmale em pessoa.

No entanto, esta aventura constituiu uma lição para o governo de Sua Graciosa Majestade. Ele percebeu que embora Gibraltar não pudesse ser tomada por homens, estava à mercê dos macacos. Por conseguinte, a Inglaterra, que é muito prática, decidiu não mais enviar para lá senão os mais feios de seus generais, de maneira que os macacos voltassem a se enganar se houvesse outro feito similar.

Esta medida lhe garantirá, verdadeiramente para sempre, a posse de Gibraltar.

Gil Braltar (Parte 4)

– Renda-se! – exclamou uma voz rouca, que parecia mais um rugido do que uma voz humana.

Alguns homens, que apareceram por trás do ajudante de campo, iriam lançar-se sobre aquele homem que havia acabado de entrar no quarto do general, quando à claridade os indivíduos reconheceram o recém chegado.

– Gil Braltar! – exclamaram.

Era ele, em efeito, aquele homem do qual não se falava há muito tempo, o selvagem das grutas de São Miguel.

– Renda-se! – voltou a gritar.

– Jamais! – respondeu o general Mac Kackmale.

De repente, no momento em que os soldados o rodeavam, Gil Braltar emitiu um silvo agudo e prolongado.

Imediatamente, a redor do edifício, logo o edifício todo, foi tomado por uma massa invasora.

Vocês irão acreditar? Eram macacos, centenas de macacos! Vinham pois recuperar dos ingleses este rochedo do qual são os verdadeiros donos, este monte que ocupavam muito antes que os espanhóis, muito antes que Cromwell houvesse sonhado em sua conquista para a Grã-Bretanha? Sim, realmente! E eram temíveis por seu número, esses macacos sem caudas, com os quais não se vivia em paz, exceto na condição de tolerar suas pilhagens, estes seres inteligentes e atrevidos que as pessoas evitam molestar, pois sabiam vingar-se (haviam feito isso muitas vezes) fazendo rolar enormes pedras sobre a cidade.

E agora, estes macacos se tornaram soldados de um louco, tão selvagem quanto eles, este Gil Braltar que eles sabiam que vivia uma vida independente deles, esse Guilherme Tell (N. do T.: Guilherme Tell (Guillaume Tell) foi um herói suíço do séc. XIV, lendário por enfrentar o governador austríaco tirano Hermann Gessler) quadrumanizado, que concentrou toda a sua existência em um só pensamento: expulsar todos os estrangeiros do território espanhol.

Que vergonha para o Reino Unido, se aquela tentativa tivesse êxito! Os ingleses, que haviam derrotado os índios, os abissínios, os tasmânios, os australianos, os bosquímanos e muitos outros, agora seriam vencidos por simples macacos!

Sim semelhante desastre chegara a ocorrer, o general Mac Kackmale não teria outro remédio que explodir seus miolos! Era impossível sobreviver a semelhante desonra! No entanto, antes que os macacos, chamados pelo silvo de seu chefe, houvessem invadido a habitação do general, alguns soldados puderam saltar sobre Gil Braltar. O louco, dotado de uma extraordinária força, resistiu, e não foi fácil reduzi-lo. Sua pele havia sido dilacerada na luta; encontrava-se amarrado, amordaçado e quase desnudo em um canto da sala, sem poder mover-se ou emitir som nenhum. Pouco tempo depois, Mac Kackmale abandonou sua casa com a firme resolução de vencer ou morrer de acordo com uma das mais importantes regras militares.

Gil Braltar (Parte 3)

O general Mac Kackmale dormia profundamente sobre suas duas orelhas, um pouco maiores que o normal. Com seus braços desmesurados, seus olhos redondos, profundos abaixo de espessas sobrancelhas, seu rosto coberto por uma barba áspera, sua fisionomia gesticulante, seus gestos de anthropopithecus, o pragmatismo extraordinário de sua mandíbula, era de uma feiura notável, inclusive para um general inglês. Um verdadeiro macaco. Mas um excelente militar, por outro lado, apesar de sua figura simiesca.

Sim! Dormia em sua confortável moradia na Main Street, uma rua sinuosa que atravessa a cidade desde a Porta do Mar até a Porta da Alameda. Talvez o general sonhava que a Inglaterra conquistava o Egito, a Turquia, a Holanda, o Afeganistão, o Sudão ou o país dos Boers, em uma palavra, todos os pontos do globo que se ajustavam a sua conveniência, justamente no momento em que corria o perigo de perder Gibraltar.

A porta do quarto abriu–se de repente:

– O que houve? – perguntou o general Mac Kackmale, recompondo-se de um salto.

– Meu general – disse um ajudante de campo que havia entrada pela porta como um torpedo –, a cidade está sendo invadida!

– Os espanhóis?

– Deve ser!

– Eles se atrevem!...

O general não terminou a frase. Levantou-se, atirou a um lado o lenço que lhe cobria a cabeça, vestiu suas calças, seu casaco, pôs suas botas e seu chapéu, armou-se com sua espada enquanto dizia:

– Que barulho é esse que estou escutando?

– O som das pedras avançando como uma avalanche por toda a cidade.

– São muitos esses patifes?

– Devem ser.

– Sem dúvida todos os bandidos da costa se reuniram para executar esse ataque: os contrabandistas de Ronda, os pescadores de São Roque e os refugiados que crescem em todas as populações...

– É terrível, meu general.

– E o governador? Foi avisado?

– Não! É impossível chegar a sua casa de campo! As portas estão ocupadas, as ruas estão cheias de assaltantes!

– E o quartel da Porta do Mar?

– Não existe meio de chegar até lá! Os atiradores devem ter tomado o quartel

– Com quantos homens você pode contar?

– Uns vinte, meu general. São os soldados do terceiro regimento, que puderam escapar quando tudo começou.

– Por São Dunstan! – exclamou Mac Kackmale. – Gibraltar arrebatada da Inglaterra por estes vendedores de laranjas! Não! Isso não acontecerá!

Nesse momento, a porta do quarto deu passagem a uma estranha criatura que saltou sobre os ombros do general.

Gil Braltar (Parte 2)

É sabido que este grande rochedo de Gibraltar, que tem uma altura de quatrocentos e vinte e cinco metros, repousa sobre uma base de duzentos e quarenta e cinco metros de largura, com quatro mil e trezentos de comprimento. Sua forma se assemelha a um enorme leão deitado, sua cabeça em direção a Espanha, e a cauda se banhando no mar. Seu rosto mostra os dentes – setecentos canhões apontados através de suas aberturas –, os dentes de uma velha, como alguém disse. Uma velha que morderia se alguém a irritasse. A Inglaterra está firmemente localizada no lugar, assim como em Pequim, em Aden, em Malta, em Poulo-Pinang, em Hong-kong, e outros tantos rochedos que, algum dia, com o progresso da mecânica, poderão ser transformados em fortalezas giratórias.

Até o momento, Gibraltar garante ao Reino Unido um domínio indiscutível sobre os dezoito quilômetros deste estreito que o clube de Hércules abriu entre Abila e Calpe, nas profundezas das águas mediterrâneas.

Teriam os espanhóis renunciado a reconquistar esta parte de sua península? Sim, sem duvida, porque parece ser inatacável por terra ou por mar.

Não obstante, existia um que estava obcecado com a ideia de reconquistar esta pedra ofensiva e defensiva. Era o chefe da tropa, um ser raro, que pode-se dizer que estava louco. Este homem se chamava precisamente Gil Braltar, nome que sem duvida alguma o predestinava a tornar possível esta conquista patriótica. Seu cérebro não havia resistido e seu lugar deveria ter sido um hospício. Nós o conhecíamos bem. No entanto, durante dez anos, não se sabia ao certo o que acontecera com ele. Talvez vagasse ao redor do mundo? Em verdade, ele não havia abandonado seu patrimônio. Vivia como um troglodita, nas florestas, em cavernas, mas especificamente no fundo daqueles inacessíveis redutos das grutas de São Miguel, que dizia-se comunicar com o mar. Acreditava-se que morrera. Vivia, entretanto, mas à maneira dos homens selvagens, privados da razão humana, que obedecem apenas seus instintos animais.

Gil Braltar (Parte 1)

Havia ali uns setecentos ou oitocentos pelo menos. De estatura mediana, mas robustos, ágeis, flexíveis, feitos para saltos prodigiosos, moviam-se iluminados pelos últimos raios do sol que se escondia do outro lado das montanhas localizadas a oeste da baía. Rápido, o disco vermelho desapareceu e a obscuridade começou a invadir o centro daquele vale encaixado nas longínquas serras de Sanorra, de Ronda e do desolado país de Cuervo.

Rapidamente, toda a tropa se imobilizou. Seu chefe acabava de aparecer montado no cume da mesma montanha, como sobre o lombo de um fraco asno. Do posto dos soldados que se encontravam sobre a parte superior da enorme pedra, ninguém foi capaz de ver o que estava a acontecendo debaixo das árvores.

– Sriss, sriss! – assoviou o chefe, cujos lábios deram a esse assovio uma extraordinária intensidade.

– Sriss, sriss! – repetiu aquela estranha tropa, formando um conjunto completo. Um ser singular era sem dúvida alguma aquele chefe de estatura alta, vestido com uma pele de macaco com o pelo à mostra, sua cabeça rodeada de uma emaranhada e espessa cabeleira, o rosto eriçado por uma barba curta, seus pés descalços e firmes debaixo de um casco de cavalo.

Levantou o braço direito e o estendeu para a parte inferior da montanha. Todos repetiram imediatamente aquele gesto com precisão militar, melhor dizendo, mecânica, como autênticos fantoches movidos pelo mesmo animador. O chefe baixou seu braço e todos os demais baixaram seus braços. Ele se inclinou para o solo. Eles se inclinaram igualmente adotando a mesma atitude. Ele empunhou um sólido bastão que começou a balançar. Eles balançaram seus bastões e executaram um molinete similar ao seu, àquele molinete que os esgrimistas chamam de “a rosa coberta”.

Então o chefe fez a volta, deslizou entre as ervas e se arrastou por baixo das árvores. A tropa o seguiu, todos se arrastando ao mesmo tempo.

Em menos de dez minutos foram percorridas as trilhas do monte, fendido pelas chuvas sem que o movimento de uma pedra houvesse posto a descoberto a presença desta massa em marcha.

Um quarto de hora depois, o chefe se deteve. Todos se detiveram como se tivessem congelado no lugar.

A duzentos metros abaixo via-se a cidade, situada ao longo da extensa e escura estrada. Numerosas luzes cintilantes deixavam ver um confuso aglomerado de cais, casas, vilas, quartéis. Mais adiante, distinguiam-se as lanternas dos barcos de guerra, as luzes de navios comerciais e das boias ancorados ao largo e que eram refletidas na superfície das tranquilas águas. Mais distante, na extremidade da Ponta da Europa, o farol projetava seu feixe luminoso sobre o estreito.

Nesse momento ouviu-se uma explosão de canhão, a primeira arma de fogo, lançado de uma das baterias rasantes. Logo começaram a escutar a batida dos tambores, acompanhados dos agudos silvos dos pífaros.

Era a hora do toque de recolher, a hora de refugiar-se em casa. Nenhum estrangeiro teria o direito de caminhar pela cidade, a não ser que estivesse escoltado por algum oficial da guarnição. Ordenava-se aos membros das tripulações dos barcos que regressassem a bordo antes que as portas da cidade fossem fechadas. Com intervalos de quinze minutos, circulavam pelas ruas patrulhas que conduziam à estação os atrasados e os bêbados. Então a cidade desaparecia em uma profunda tranquilidade. O general Mac Kackmale poderia então dormir profundamente.

Esta noite não parecia que a Inglaterra tivesse que temer nada em seu rochedo de Gibraltar.

Capítulo XV - Para Concluir


Não está esquecida, decerto, a enorme simpatia que envolvera os três viajantes durante sua partida. Se no começo da empreitada causaram tal emoção no Velho e no Novo Mundo, qual seria o entusiasmo que os esperava no regresso? Aqueles milhões de espectadores que na altura invadiram a península da Flórida não se precipitariam para rever os sublimes viajantes? Aquelas legiões de estrangeiros, que acorreram de todos os pontos do Globo às costas americanas, deixariam porventura o território da União sem voltarem a ver Barbicane, Nicoles e Michel Ardan? Não, e a ardente paixão do público iria com certeza corresponder à grandeza da experiência.

Essas criaturas humanas que tinham deixado o esferóide terrestre e que regressavam depois dessa estranha viagem pelos espaços celestes, não podiam deixar de ser recebidos como o será, um dia, o profeta Elias quando voltar a descer na Terra.

Vê-los primeiro, ouvi-los depois, tal era o desejo de todos. E este desejo seria em breve realizado pela grande maioria dos habitantes da União.

Barbicane, Michel Ardan, Nicoles e os delegados do Clube do Canhão, que regressaram sem demora a Baltimore, foram ali acolhidos com um entusiasmo indescritível. Os relatórios de viagem do presidente Barbicane estavam prontos para ser entregues à publicidade.

O New York Herald comprou o manuscrito por um preço ainda desconhecido, mas cuja importância foi com certeza muito elevada. De fato, durante a publicação da ‘Viagem à Lua’, a tiragem daquele jornal ascendeu a cinco milhões de exemplares. Três dias depois do regresso dos viajantes à Terra, os pormenores mais insignificantes da expedição eram conhecidos. Restava apenas ver os heróis da aventura sobre-humana.

A exploração de Barbicane e dos seus amigos à volta da Lua permitira pôr à prova as diversas teorias admitidas no que diz respeito ao satélite terrestre. Aqueles sábios tinham observado o satélite em condições muito particulares. Sabia-se agora quais os sistemas que deviam ser rejeitados e quais os que deviam ser admitidos, no que se refere a formação, à origem e à habitabilidade daquele astro. O seu passado, o seu presente e o seu futuro tinham mesmo desvendado os seus últimos segredos.

Como se podia objetar a essas observações, sabendo-se que haviam feito, a menos de quarenta quilômetros, um levantamento dessa curiosa Montanha de Ticho, a mais estranha do sistema orográfico lunar? Que responder àqueles sábios, cujos olhares mergulharam nos abismos do Círculo de Platão? Como contradizer aqueles audaciosos aventureiros, que os acasos de uma experiência levaram acima dessa face invisível do disco, que até então nenhum olhar humano vira? Cabia-lhes agora o direito de impor os limites a essa ciência selenográfica que recompusera o mundo lunar, como Cuvier o esqueleto de um fóssil, e de dizer: “A Lua foi um mundo habitável e habitado antes da Terra! A Lua é um mundo inabitável e agora desabitado!”

Para festejar o regresso do mais ilustre dos seus membros e dos seus dois companheiros, o Clube do Canhão pensou em organizar um banquete, mas um banquete digno daqueles triunfadores, digno do povo americano, e em tais condições que todos os habitantes da União pudessem tomar parte nele.

Todos os grandes terminais de estradas de ferro foram ligados entre si por meio de carris volantes. Depois, em todas as gares, embandeiradas com as mesmas bandeiras, decoradas com os mesmos ornatos, armaram-se mesas uniformemente guarnecidas. Em horas determinadas, calculadas com exatidão e indicadas em relógios elétricos que estavam certos até nos segundos, a população foi convidada a tomar lugar às mesas do banquete.

Durante quatro dias, de 5 a 9 de janeiro, os trens pararam, como é normal acontecer aos domingos na União, e todas as vias ficaram livres. Só à uma locomotiva muito rápida, que puxava um vagão de honra, foi permitido circular durante aqueles quatro dias nas linhas das estradas de ferro dos Estados Unidos.
Na locomotiva, conduzida por um maquinista e o foguista, ia também, por especial deferência, o digno J. T. Maston, secretário do Clube do Canhão.

O vagão fora reservado ao Presidente Barbicane, ao Capitão Nicoles e a Michel Ardan. Ao silvo da máquina, depois dos urras e de todas as onomatopéias de admiração da língua nativa, o trem deixou a gare de Baltimore, atingindo em breve uma velocidade de oitenta léguas por hora. Mas o que era esta velocidade comparada com, a que alcançaram os três heróis ao sair do columbiad?

Desse modo, foram de uma cidade a outra encontrando as populações à mesa, que os saudavam com as mesmas aclamações e os mesmos bravos. Percorreram o Leste da União, atravessando a Pensilvânia, o Connecticut, o Massachussetts, o Vermont, o Maine e a Nova Brunswick;

O Norte e o Oeste, passando por Nova Iorque, Ohio, Michigan e Wisconsin; desceram para o Sul pelo Ilinóis, Missuri, Arkansas, Texas e Luisiana; correram ao Sudeste pelo Alabama e a Flórida; voltaram a subir pela Geórgia e pelas Carolinas; visitaram o centro pelo Tennessee, Kentucky, Virgínia e Indiana; e, finalmente, uma vez passada a estação de Washington, regressaram a Baltimore.

Durante quatro dias, puderam os três amigos acreditar que os Estados Unidos estavam à mesa de um único e enorme banquete, para saudá-los em uníssono e com os mesmos urras!

A apoteose era digna daqueles heróis que a Fábula teria guindado às fileiras dos semideuses.

Contudo, conduzirá a algum resultado prático essa experiência sem precedentes nos anais das viagens? Serão estabelecidas comunicações diretas com a Lua? Se criará um serviço de navegação através do espaço, para servir a circulação no mundo solar? Se deslocaria de um planeta a outro, de Júpiter a Mercúrio, ou, mais tarde, de uma estrela a outra, da Polar a Sírio? Descobrir-se-á um meio de locomoção que permita visitar esses sóis que abundam no firmamento?

Estas perguntas ninguém poderá responder.

Mas, conhecendo-se o audacioso engenho da raça anglo-saxônica, ninguém por certo se espantará que se os americanos procurarem tirar o melhor partido da experiência do Presidente Barbicane.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

 
A verdade é que, algum tempo depois do regresso dos viajantes, o público acolheu muito favoravelmente os anúncios de uma sociedade em comandita, com um capital de cem milhões de dólares, dividido em cem mil ações de mil dólares cada.

Denominava-se Sociedade Nacional de Comunicações Interestelares e tinha Barbicane por presidente, o Capitão Nicoles por vice-presidente, J. T. Maston por secretário da administração e Michel Ardan por diretor da circulação.

E como, no que se refere a negócios, o temperamento americano gosta de prever tudo, até mesmo a falência, foram antecipadamente designados para juiz-comissário o digníssimo Harry Troloppe e Francis Dayton para síndico!

Capítulo XIV - O salvamento

O local onde o projétil se afundara estava devidamente assinalado. Faltavam, porém, os instrumentos para agarrar-lo e trazer à superfície. Era preciso concebê-los e depois fabricá-los. Os engenheiros americanos não podiam sentir-se embaraçados com tão pouco. Estavam certos de içar o projétil, apesar do seu peso. Aliás, o projétil seria aligeirado pela densidade do líquido em que estava mergulhado, desde que as garras o fixassem e pudessem contar com a ajuda do vapor.

Não era, porém, suficiente pescar o projétil. Era preciso agir quanto antes para salvaguarda dos viajantes. A ninguém passava pela cabeça que não estivessem ainda vivos.

- Sim! - repetia incessantemente J. T. Maston, cuja confiança era contagiante - os nossos amigos são homens hábeis, e não podem ter caído como tolos. Estão vivos e bem vivos, mas é preciso que nos apressemos para encontrá-los com vida. Não são os víveres nem água que me preocupam e sim o ar. Não tarda que o ar lhes falte. Vamos! Depressa! Depressa!

A verdade é que andavam todos numa roda-viva. Susquehanna adaptou-se ao seu novo fim. Prepararam-se as suas poderosas máquinas de molde a acionar os cabos destinados a içar o projétil. Este, sendo de alumínio, pesava apenas dezenove mil duzentas e cinquenta libras, peso muito inferior ao do cabo que foi levantado em condições idênticas. A única dificuldade consistia, portanto, em agarrar um projétil cilindro cônico, cujas paredes, lisas, tornavam a operação bastante complicada.

Com este fim, o engenheiro Murchison, que acorrera a São Francisco, construiu enormes arpões dotados de um sistema automático que, se lograssem agarrar o projétil com as suas possantes tenazes, não mais o largariam. Preparou, também, escafandros, de tal forma impermeáveis e resistentes, que permitiam aos mergulhadores reconhecer o fundo do mar. Fez igualmente embarcar na Susquehanna aparelhos de ar comprimido, de uma concepção muito engenhosa. Eram verdadeiras câmaras com muitas vigias, e que podiam descer a grandes profundidades, através da introdução de água em certos compartimentos. Esses aparelhos existiam já em São Francisco, onde serviram para a construção de um dique submarino, o que constituía um feliz acaso, porque não teria havido tempo para construí-los.

Não obstante, apesar da perfeição desses aparelhos o êxito da operação ainda não era certo. Quantas incertezas persistiam ainda, e bem justificadas, uma vez que se tratava de trazer o projétil de uma profundidade de vinte mil pés! E depois, mesmo que o conseguissem, como teriam os viajantes suportado aquele terrível choque, que nem talvez vinte mil pés de água amorteceriam suficientemente?

Importava, em suma, trabalhar; e depressa! J. T. Maston pressionava os seus operários dia e noite. Ele estava disposto quer a envergar o escafandro, quer a experimentar os aparelhos de ar, para ir verificar a situação dos seus corajosos amigos.

Contudo, apesar de toda a diligência empregada na construção dos diferentes engenhos, e não obstante as consideráveis somas postas à disposição do Clube do Canhão pelo Governo da União, passaram ainda cinco dias - cinco séculos - antes que todos os preparativos estivessem terminados.

Durante esse período, a opinião pública subira ao rubro.

Através dos fios e dos cabos elétricos, os telegramas cruzavam o Mundo em todas as direções. O salvamento de Barbicane, Nicoles e Michel Ardan era um assunto de interesse internacional. Todos os povos que haviam contribuído para a subscrição do Clube do Canhão atribuíram um especial significado à salvação dos viajantes.

Finalmente, as amarras, as câmaras-de-ar e os arpões automáticos foram embarcados na Susquehanna. J. T. Maston, o engenheiro Murchison e os delegados do Clube do Canhão ocupavam já os seus camarotes. Restava apenas partir.

Em 21 de dezembro, às oito horas da noite, a corveta levantou ferro, com mar de feição. Corria uma brisa de nordeste e fazia frio. Toda a população de São Francisco estava apinhada no cais, emocionada e silenciosa. Reservava as manifestações de regozijo para o regresso.

Deu-se ao vapor a máxima pressão, e a hélice da Susquehanna levou-a rapidamente para o largo.

É inútil relatar as conversas que houve a bordo entre oficiais, marinheiros e passageiros. Todos comungavam do mesmo pensamento. Todos aqueles corações palpitavam sob a mesma emoção.

Todavia, enquanto homens corriam em seu socorro, que faziam Barbicane e os companheiros? Que lhes teria acontecido? Estariam em condições de tentar alguma audaciosa manobra para conquistar a liberdade? Ninguém podia dizê-lo. A verdade é que todos os meios teriam falhado! Imersa a perto de duas léguas de profundidade, aquela prisão de metal desafiava todos os esforços dos prisioneiros.

A Susquehanna, depois de uma veloz travessia, devia chegar ao local do acidente às oito horas da manhã do dia 23 de dezembro. Porém, foi necessário esperar pelo meio-dia para se obter a posição exata. A bóia, na qual se fixara a linha da sonda, ainda não fora avistada.

Ao meio-dia, o Capitão Blomsberry, ajudado pelos oficiais que controlavam a observação, calculou a sua posição na presença dos delegados do Clube do Canhão. Houve um momento de ansiedade. Verificou-se que a corveta estava a oeste e a escassos minutos do local exato onde o projétil desaparecera nas ondas. Corrigiu-se, portanto, a rota do navio, de maneira a que alcançasse aquele ponto preciso.

Ao meio-dia e quarenta e sete minutos, localizou-se a bóia. Estava em perfeito estado, e, por certo, pouco derivara.

- Até que enfim! - exclamou J. T. Maston.

- Podemos começar? - perguntou o Capitão Blomsberry.

- Sem perder um segundo - respondeu J. T. Maston.

Trataram de tomar todas as precauções para que a corveta se mantivesse em completa imobilidade.

Antes de tentar içar o projétil, o engenheiro Murchison quis primeiro saber que posição ocupava sobre o fundo oceânico. Os aparelhos submarinos, destinados a esta operação, receberam o seu aprovisionamento de ar. O manejo desses engenhos tinha os seus perigos, porque, a vinte mil pés de profundidade, e sob tão consideráveis pressões, expunham-se a rupturas cujas consequências seriam desastrosas.

J. T. Maston, o irmão de Blomsberry e o engenheiro Murchison tomaram lugar na câmara-de-ar, sem se preocuparem com os eventuais perigos. O comandante orientava da ponte a operação, pronto a parar ou a içar as correntes ao menor sinal. A hélice fora desengatada, e toda a força das máquinas estava aplicada ao cabrestante, pelo que seria fácil trazer rapidamente para bordo todos os aparelhos.

A descida começou à uma hora e vinte e cinco minutos da tarde, e a câmara, devido ao peso dos reservatórios, cheios de água, desapareceu sob a superfície do oceano.

A emoção dos oficiais e dos marinheiros partilhava-se agora entre os prisioneiros do projétil e os do aparelho submarino. Quanto a estes, esqueciam-se de si próprios. Colados aos vidros das vigias, observavam atentamente a massa líquida que atravessavam.

A descida foi rápida. Às duas horas e dezessete minutos, J. T. Maston e os companheiros atingiram o fundo do Pacífico. Mas nada viram, a não ser um árido deserto, que já nem era animado pela fauna e flora marinhas. Á luz das lâmpadas, dotadas de possantes refletores, podiam ver as sombrias camadas de água num raio bastante extenso, mas o projétil mantinha-se invisível.

A impaciência dos audazes mergulhadores era indescritível. Como o aparelho estava em comunicação elétrica com a corveta, fizeram o sinal combinado, e a Susquehanna passeou a câmara na distancia de uma milha, suspensa a alguns metros acima do fundo.

Deste modo, exploraram toda a planície submarina, enganados a cada instante por ilusões de ótica que lhes cortavam a respiração. Aqui, um rochedo, além, uma intumescência do fundo, que se lhes afiguravam como sendo o projétil tão procurado. Depois, no momento seguinte, reconheciam o erro e desesperavam-se.

- Mas onde estão eles? Onde estão? - exclamava J. T. Maston.

E o pobre homem chamava em altos gritos por Nicoles, Barbicane e Michel Ardan, como se os seus infelizes amigos pudessem ouvi-lo ou responder-lhe através daquele impenetrável meio!

A pesquisa continuou nessas condições, até o momento em que o ar do aparelho, viciado, obrigou os mergulhadores a subir. Começaram a içá-lo por volta das seis horas da tarde, e só à meia-noite a operação terminou.

- Amanhã continuamos - disse J. T. Maston, quando pisou a coberta da corveta.

- Sim - respondeu o Capitão Blomsberry - Mas em outro local.

- De acordo.

J. T. Maston continuava a acreditar no êxito das buscas, enquanto os companheiros, a quem já ia esmorecendo o entusiasmo das primeiras horas, compreendiam a enorme dificuldade da empresa. O que parecia fácil em São Francisco tornava-se ali, em pleno oceano, quase irrealizável. As probabilidades de êxito diminuíram numa grande proporção. Só o acaso podia ajudá-los a encontrar o projétil.

No dia seguinte, 24 de dezembro, não obstante as fadigas da véspera, retomou-se a operação. A corveta deslocou-se alguns minutos para oeste, e o aparelho, cheio de ar, levou os mesmos exploradores para as profundezas do oceano.

O dia inteiro foi passado em infrutíferas buscas. O leito do mar estava deserto. O dia 25 nada trouxe de novo. O dia 26 também não.

Era desesperador. Todos pensavam naqueles desventurados, encerrados no projétil há vinte e seis dias! Talvez naquele momento sentissem já os primeiros sintomas de asfixia, se é que tinham escapado à formidável queda. o ar esgotava-se, e com ele a coragem, o ânimo.

- O ar é possível - considerava teimosamente J. T. Maston - mas o ânimo nunca.

Em 28, após mais dois dias de buscas, perdera-se toda a esperança. O projétil era um átomo na imensidade do mar. Teriam que renunciar a encontrá-lo.

Entretanto, J. T. Maston não queria ouvir falar em renúncia, em partida. Não queria abandonar o local sem, pelo menos, ter avistado o túmulo dos seus amigos. Mas o comandante Blomsberry não podia ceder a essa obstinação, pelo que, a despeito das reclamações do digno secretário, deu ordem de aparelhar.

Às nove horas da manha do dia 29 de dezembro, a Susquehanna, virando a proa a nordeste, retomou a rota da bala de São Francisco.

Eram dez horas da manhã. A corveta afastava-se em velocidade moderada, como que com pena, do lugar da catástrofe, quando o marinheiro que estava sentado nas barras do joanete, e que observava o mar, gritou de súbito:

- Bóia a sotavento!

Os oficiais olharam na direção indicada. Com os seus óculos viram que o objeto assinalado tinha, de fato, o aspecto dessas bóias que servem para balizar os canais das balas e dos rios. Mas, pormenor singular, tinha no vértice do seu cone, que emergia da água cinco a seis pés, uma bandeira que flutuava ao vento. A bóia resplandecia ao sol, como se as suas paredes fossem feitas de chapas de prata.

O Comandante Blomsberry, J. T. Maston e os delegados do Clube do Canhão subiram à ponte e examinaram aquele objeto errante que vogava sobre as ondas. Olhavam todos com uma febril ansiedade, mas em silêncio. Ninguém ousava dar voz ao pensamento que atravessava o espírito de todos.

A corveta aproximou-se a menos de duzentas e quarenta braças do objeto. Um frêmito perpassou por toda a tripulação. A bandeira da bóia era a americana.

Ouviu-se então um verdadeiro rugido. Era o bravo J. T. Maston que acabava de cair como uma massa. Esquecendo, por um lado, que o seu braço direito fora substituído por um gancho de ferro, e, por outro, que um simples barrete de guta-percha lhe protegia a caixa craniana, acabava de vibrar na própria cabeça uma formidável pancada.

Precipitaram-se para ele. Levantaram-no. Fizeram com que recuperasse os sentidos. E quais foram as suas primeiras palavras?

- Ali! Grandes brutos! Grandíssimos idiotas. Refinadíssimos ignorantes que nós somos.

- O que há?... - Perguntava-se à sua volta.

- Por favor, explique-se...

- O que há? Grandes imbecis! - berrou o terrível secretário - o projétil pesa apenas dezenove mil duzentas e cinquenta libras!

- E então?

- E que só desloca vinte e oito toneladas, ou seja, cinquenta e seis mil libras, e que, consequentemente, flutua!

E como o digno homem sublinhou o verbo flutuar. E era a verdade! Todos, todos aqueles sábios haviam esquecido dessa lei fundamental: a mercê do seu menor peso específico, o projétil, depois de ter sido levado pela queda até às maiores profundidades do oceano, devia naturalmente voltar à superfície! E agora flutuava tranquilamente ao sabor das ondas...

Lançaram-se as embarcações ao mar. J. T. Maston e os seus amigos precipitaram-se nelas. A emoção estava no auge. Os corações palpitavam, enquanto os escaleres avançavam para o projétil. Que aconteceria a eles? Vivos ou mortos? Vivos, vivos, a menos que a morte tivesse levado Barbicane e os dois companheiros depois de terem arvorado a bandeira.

Pairava um profundo silêncio sobre os escaleres. Todos os corações palpitavam. Os olhos não viam. Uma das vigias do projétil estava aberta. Alguns pedaços de vidro, que restavam no caixilho, provavam que a vidraça fora quebrada. A vigia estava então a cinco pés do nível da água.

Fonte:http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Um dos escaleres acostou ao projétil, o de J. T. Maston. Este precipitou-se para a vidraça quebrada...

Naquele momento, ouviu-se uma voz alegre e clara, a voz de Michel Ardan que exclamava em tom de vitória:

- Tudo bem, Barbicane. Tudo bem!

Barbicane, Michel Ardan e Nicoles jogavam dominó.

Capítulo XIII – J.T.Maston volta à cena


A emoção foi grande a bordo da Susquehanna. Oficiais e marinheiros esqueciam o terrível perigo que acabavam de correr, o quanto estiveram perto de ser esmagados e de ir a pique. Só se lembravam da catástrofe que culminava aquela viagem. A mais audaciosa empreitada de todos os tempos exigiu como tributo a vida dos audazes aventureiros que a intentaram.

“Eles voltaram”, dissera o jovem aspirante, e todos o compreenderam. Ninguém duvidava que o bólide fosse o projétil do Clube do Canhão. Quanto à sorte dos viajantes, as opiniões dividiam-se.

- Estão mortos! - garantia um.

- Estão vivos - teimava outro - As águas são profundas e amorteceram-lhes a queda.

- Mas faltou-lhes o ar - opinava ainda outro - e morreram asfixiados!

- Queimados! - exclamavam outros - O projétil, ao atravessar a atmosfera, nada mais era do que uma massa incandescente.

- Que importa! - concluíram por unanimidade - Vivos ou mortos, o importante é tirá-los de lá.

Entretanto, o Capitão Blomsberry reunira os oficiais e, com a concordância de todos, conduzia o conselho. Tratava-se da escolha uma decisão rápida. O mais urgente era pescar o projétil. A operação era difícil, mas não impossível. Faltavam, porém, os engenhos necessários, que teriam de ser simultaneamente possantes e precisos. Resolveu-se, portanto, demandar o porto mais próximo e avisar o Clube do Canhão da queda do referido projétil.

Esta resolução foi tomada por unanimidade. A escolha do porto levantou alguma discussão. É que a costa vizinha não possuía qualquer ancoradouro no vigésimo sétimo grau de latitude. Mais acima, para além da península de Monterey, localizava-se a importante cidade que lhe deu o nome. Mas, construída nos confins de um verdadeiro deserto, nem sequer estava ligada ao interior por uma rede telegráfica, e só a eletricidade podia difundir com a necessária rapidez aquela grave notícia.

Alguns graus mais além se abria a baía de São Francisco. A partir da capital da região do ouro, as comunicações com o centro da união eram fáceis. A todo o vapor, a Susquehanna chegaria ao porto de São Francisco em menos de dois dias. A corveta devia, portanto, zarpar sem demora.

As caldeiras estavam sob pressão. Podia-se partir imediatamente. Havia ainda no fundo duas mil braças de sonda. O Capitão Blomsberry, porém, não quis perder um tempo precioso a içá-la e resolveu mandar cortar a linha.

- Prenderemos uma bóia na ponta - sugeriu ele - e esta sinalizará o ponto exato onde caiu o projétil.

- De resto - acrescentou o Tenente Bronsfield - sabemos qual é, rigorosamente, a nossa posição: vinte e sete graus e sete minutos de latitude norte por quarenta e um graus e trinta e sete minutos de longitude oeste.

- Bem, senhor Bronsfield - prosseguiu o capitão - peço licença para lhe recomendar que mande cortar a linha. Uma resistente bóia, reforçada com um par de chapas, foi lançada ao mar. A ponta da linha foi-lhe solidamente fixada por cima. Aquela bóia, sujeita apenas à oscilação da vaga, não devia derivar muito.

Foi nessa altura que o engenheiro mandou prevenir o capitão que havia pressão e que, consequentemente, podiam partir. O capitão enviou-lhe os seus agradecimentos por esta excelente comunicação. A corveta manobrou e, mudando de direção, dirigiu-se a todo o vapor para a baía de São Francisco. Eram três horas da manhã.

Um percurso de duzentas léguas não era grande coisa para um navio rápido como a Susquehanna. Bastariam trinta e seis horas para devorar aquela distância. Assim, treze horas e vinte e sete minutos da tarde do dia 14 de dezembro, entrava em São Francisco.

À vista daquele navio da marinha nacional, que chegava a grande velocidade, com o gurupés raso e o mastro do traquete escorado, atraiu singularmente a curiosidade pública. Uma multidão compacta amontoou-se de imediato no cais, para seguir de perto o desembarque.

Depois de ancorarem, o Capitão Blomsberry e o Tenente Bronsfíeld desceram para um escaler de oito remos, que os pôs rapidamente em terra. Saltaram para o cais.

- O telégrafo? - perguntaram, sem responder às mil perguntas que lhes eram dirigidas.
Foi o próprio capitão do porto que os conduziu a estação telegráfica, no meio de uma imensa multidão.

Blomsberry e Bronsfield entraram na estação, enquanto a multidão se acotovelava na porta.

Minutos mais tarde, um despacho em quadruplicado foi expedido: o primeiro para o secretário da Marinha, Washington; o segundo para o vice-presidente do Clube do Canhão, Baltimore; o terceiro para o digno J. T. Maston, Long’s Peak, Montanhas Rochosas; e o quarto para o subdiretor do Observatório de Cambridge, Massachussetts.

Estava concebido nestes tempos:

“A 200 7' latitude norte por 410 37' longitude oeste, em 12 de dezembro, à uma hora e dezessete minutos, projétil columbiad caiu Pacífico. Enviem instruções. Blomsberry, comandante Susquehanna.”

Cinco minutos depois, toda a cidade de São Francisco sabia o que se passara. Antes das seis da tarde, os restantes Estados da União tiveram conhecimento de catástrofe. Depois da meia-noite, através do cabo telegráfico, toda a Europa sabia o resultado da grande experiência americana.

Renunciamos a descrever o efeito produzido em todo o Mundo por aquele inesperado desenlace.

Logo que recebeu o despacho, o secretário da Marinha ordenou por telégrafo ao Susquehanna para se manter na baía de São Francisco, com as caldeiras sob pressão. Dia e noite. Deveriam estar prontos para retornarem ao mar.

O Observatório de Cambridge reuniu-se em sessão extraordinária e, com a peculiar serenidade que distingue as corporações de sábios, discutiu paulatinamente a questão sob o ponto de vista científico.

No Clube do Canhão houve explosão. Os artilheiros estavam todos reunidos. O vice-presidente, o digníssimo Wilcome, lia precisamente aquele prematuro telegrama, no qual J. T. Maston e Belfast anunciavam que o projétil acabava de ser avistado no gigantesco refletor de Long’s Peak. Esta comunicação afirmava, ainda por cima, que o projétil, retido pela atração da Lua, desempenhava o papel de sub-satélite do mundo solar.

- Sabemos agora que o aconteceu na realidade.

Entretanto, a chegada do despacho de Blomsberry, que tão formalmente contradizia o telegrama de J. T. Maston, provocou a divisão no seio do Clube do Canhão. Formaram-se dois partidos. De um lado, o das pessoas que admitiam a queda do projétil e, consequentemente, o regresso dos viajantes. Do outro, o dos que, fazendo fé nas observações de Long’s Peak, opinavam que o comandante da Susquehanna errara.

Para estes últimos, o suposto projétil não passava de um bólide, nada mais do que um bólide, um globo cadente que, na sua queda, atingira e avariara a proa da corveta. Não se sabia lá muito bem como rebater tal argumentação, porque a velocidade de que o corpo ia animado devia ter dificultado a sua observação. Daí que o comandante e os oficiais da Susquehanna pudessem ter se enganado, mesmo de boa vontade. Contudo, havia um argumento que militava a seu favor: é que se o projétil tivesse caído em terra, o embate com o esferóide terrestre só poderia ter ocorrido no vigésimo sétimo grau de latitude norte, e - tendo em conta o tempo decorrido e o movimento de rotação da Terra - entre o quadragésimo primeiro e o quadragésimo segundo grau de latitude oeste.

Como quer que fosse, o Clube do Canhão decidiu por unanimidade que o irmão de Blomsberry, Bilsby e o Major Elphiston se dirigissem sem demora para São Francisco e, uma vez lá, arranjassem os meios de retirar o projétil das profundezas do oceano.

Esses dedicados homens partiram de imediato. A estrada de ferro, que em breve atravessaria toda a América Central, levou-os a Saint-Louis onde os esperava um rápido coach mail.

Justamente no mesmo instante em que o secretário da Marinha, o vice-presidente do Clube do Canhão e o subdiretor do Observatório de Cambridge recebiam o despacho de São Francisco.

O digno J. T. Maston experimentava a mais violenta emoção de toda a sua vida - emoção que nem a explosão do seu célebre morteiro lhe causara, e que por pouco lhe ia custando a vida.

O leitor lembra-se, por certo, de que o secretário do Clube do Canhão partira alguns instantes depois do projétil - e quase tão depressa como este - para a estação de Long’s Peak, nas Montanhas Rochosas. O sábio J. Belfast, diretor do Observatório de Cambridge, acompanhava-o. Assim que chegaram, os dois amigos instalaram-se sumariamente e nunca mais deixaram o cimo do enorme telescópio.

Sabe-se que o gigantesco instrumento fora concebido segundo o sistema de refletores a que os ingleses chamam front view. Esta disposição fazia com que os objetos sofressem uma só reflexão, tornando-os consequentemente mais nítidos. Deste fato resulta que J. T. Maston e Belfast, para procederem às observações, tinham de se colocar na parte superior do instrumento e não na parte inferior. Subiam até lá através de uma escada de caracol, obra-prima de leveza. Por baixo, se abria um verdadeiro poço de metal, cujo fundo era um espelho metálico, e que tinha duzentos e oitenta pés de profundidade.

Ora, era na estreita plataforma, que circundava o cimo do telescópio, que os dois sábios passavam a vida a maldizer a luz do dia que lhes escondia da vista, a Lua, e as nuvens que a velavam durante a noite.

Imagine-se, portanto, qual foi a sua alegria, quando, decorridos alguns longos dias de espera, avistaram o veículo que transportava os amigos no espaço. Esta alegria deu lugar a uma profunda decepção, quando, fiando-se em observações incompletas, puseram a correr pelo mundo a errada afirmação de que o projétil se tornara um satélite da Lua, gravitando numa órbita imutável.

Desde aquele instante, o projétil desaparecera, desaparecimento tanto mais explicável quanto é certo que passava, naquela altura, por detrás do disco visível da Lua. Avalie-se então a impaciência do impetuoso J. T. Maston e do não menos ardoroso companheiro, quando chegou o momento em que o projétil devia reaparecer sobre o disco visível! A cada minuto da noite procuraram avistá-lo de novo, mas debalde! Desta frustração resultaram discussões incessantes e violentas entre eles. Belfast afirmava que o projétil não estava visível, enquanto J. T. Maston sustentava que ele “se lhe metia pelos olhos dentro!”

- É o projétil! - insistiu J. T. Maston.

- Que projétil? - negava Belfast - É uma avalanche que rola por alguma montanha lunar.

- Então, o veremos amanhã.

- Não! Nunca mais o veremos! Desapareceu no espaço.

-Não!

- Sim!

E naqueles momentos em que as intenções choviam como granizo, a bem conhecida irritabilidade do secretário do Clube do Canhão constituía um permanente perigo para o estimável Belfast.

Aquela convivência logo se tornaria impossível se um inesperado acontecimento não viesse cortar as constantes discussões.

Na noite de 14 para 15 de dezembro, os dois irreconciliáveis amigos estavam ocupados em observar o disco lunar. Como era hábito, J. T. Maston injuriava o sábio Belfast, que, por seu lado, lhe respondia ao pé da letra. O secretário do Clube do Canhão teimava, pela milésima vez, que tinha avistado o projétil, acrescentando mesmo que conseguira
divisar a cara de Michel Ardan através de uma das vigias.

Em dado momento, o criado de Belfast apareceu na plataforma - eram dez horas da noite - e entregou-lhe o telegrama enviado pelo comandante da Susquehanna.

Belfast rasgou o envelope, leu e soltou um grito.

- Hem? - fez J. T. Maston - O projétil!

- E então?

- Caiu na Terra!

Um novo grito, um verdadeiro urro respondeu-lhe desta vez.

Belfast voltou-se para J. T. Maston. O infeliz, imprudentemente debruçado no tubo de metal, desaparecera no imenso telescópio. Uma queda de duzentos e oitenta pés! Belfast, fora de si, precipitou-se para a abertura do refletor.

Respirou. J. T. Maston, pendurado pelo seu gancho de metal, estava suspenso num dos esteios que mantinham o afastamento do telescópio, de onde soltava formidáveis berros.

Belfast clamou pelos ajudantes, que não tardaram a acorrer. Montaram talhas e içaram a custo o imprudente secretário do Clube do Canhão. Um quarto de hora depois, os dois sábios desciam a vertente das Montanhas Rochosas, e dois dias mais tarde, ao mesmo tempo em que os seus amigos do Clube do Canhão, chegavam a São Francisco.

Elphiston, o irmão de Blomsberry e Bilsby precipitaram-se ao encontro deles, assim que chegaram.

- Que vamos fazer? - perguntaram.

- Tirar da água o projétil - respondeu J. T. Maston - e o mais depressa possível!

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...