Capitulo IX - Ticho

Às seis horas da tarde, o projétil passava pelo pólo sul, a menos de sessenta quilômetros, distância igual à de que se tinha aproximado do pólo norte. A curva elíptica desenhava-se, portanto, rigorosamente.

Naquele momento, os viajantes reentraram no benfazejo eflúvio dos raios solares. Reviam as estrelas que se moviam com lentidão de oriente para ocidente. Saudaram o astro radiante com um triplo hurra. Além da luz, o Sol enviava-lhe o calor, que aquecia as paredes metálicas.

- Ah! - disse Nicoles - como fazem bem estes raios de calor! Com que impaciência, depois de tamanha noite, os selenitas devem esperar a reaparição do astro do dial

- Sim - concordou Michel Ardan, saboreando, por assim dizer, aquele luminoso éter - a vida é luz e calor!

Naquele instante, a base do projétil tendia a afastar-se ligeiramente da superfície lunar, de maneira a seguir uma órbita elíptica bastante alongada. Daquele ponto, se a Terra estivesse “cheia”, Barbicane e os companheiros poderiam tê-la visto. Mas, como estava mergulhada na irradiação do Sol, mantinha-se absolutamente invisível.

Um outro espetáculo atraiu o olhar dos viajantes, o ofereci]da pela região austral da Lua, que os binóculos aproximavam a um oitavo de légua. Os três amigos não arredavam pé das vigias e examinavam os mínimos pormenores daquele estranho continente.

Os montes Doerfel e Leibniz formam dois grupos distintos, que se desenvolvem perto do pólo sul. O primeiro grupo alonga-se desde o pólo até o octogésimo quarto paralelo, sobre a parte oriental do astro; o segundo, que se recorta no bordo oriental, vai do sexagésimo quinto grau ao pólo. Sobre os caprichosos contornos das suas arestas, apareciam camadas extensas e deslumbrantes, tal como as assinalou o Padre Secchi. Com mais segurança do que o ilustre astrônomo romano, Barbicane não teve dificuldade em reconhece-lhes a natureza.

- É neve! - exclamou ele.

- Neve? - repetiu Nicoles.

- Sim, Nicoles. Neve cuja superfície está profundamente gelada. Vejam como reflete os raios luminosos. As lavas arrefecidas não dariam uma reflexão tão intensa. Há, por- tanto, água e ar na Lua. Menos do que se poderia desejar, mas o fato já não pode ser contestado.

Não, não podia sê-lo! E, se algum dia Barbicane voltasse à Terra, as suas notas arrebatariam todos os títulos notáveis no domínio das observações selenográficas. O projétil prosseguia indiferente à sua rota original, mas lá embaixo aquele caos não se modificava, Sucediam-se incessantemente círculos, crateras e montanhas esburacadas.

Nem uma planície, nem um mar. Era uma Suíça, uma Noruega interminável. Finalmente, no centro daquela região gretada, precisamente no ponto culminante, apareceu o deslumbrante Ticho, a mais esplêndida montanha do disco lunar, à qual a posteridade ligará sempre o nome do ilustre astrônomo dinamarquês.

Ticho concentra em si tal luminosidade que os habitantes da Terra podem avistá-la sem muita ajuda. Imagine-se, naquele momento, qual deveria ser a intensidade daquela luz para os olhos de observadores colocados a cento e cinquenta léguas apenas!

Através daquele puro éter, o seu radiante era de tal forma insustentável que Barbicane e os seus amigos tiveram de escurecer as lentes dos binóculos com o fumo do gás, a fim de lhe poder suportar o brilho. Depois, atônitos, emitindo apenas algumas interjeições admirativas, limitaram-se a olhar, a contemplar. Todos os sentimentos, todos os sentidos se concentraram nos olhares, tal como a vida que, sob o domínio de uma emoção violenta, se concentra por inteira no coração.
Como Aristarco e Copérnico, Ticho pertence ao sistema de montanhas radiantes. Mas é de todas a mais completa e a com mais personalidade, consequentemente, o melhor testemunho dessa extraordinária ação vulcânica que originou a formação da Lua.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

A distância que separava os viajantes dos cumes anulares de Ticho não era assim tão considerável que não se pudesse observar-lhe os principais pormenores. Mesmo sobre o aterro que constitui a circunvalação de Ticho, as montanhas, agarradas aos flancos dos taludes interiores e exteriores, dispunham-se em gigantescos degraus. A oeste pareciam mais elevados uns trezentos a quatrocentos metros do que a leste. Nenhum sistema de acampamento militar terrestre era comparável àquela fortificação. Uma cidade que tivesse sido construída no fundo daquela cavidade circular seria absolutamente inacessível e maravilhosamente deitada sobre aquele solo rico em acidentes pitorescos!

A natureza não deixara o fundo da cratera plano e vazio. Possuía a sua orografia especial, um sistema de montanhas que dela faziam um mundo à parte. Os viajantes distinguiram nitidamente cones, colinas centrais, notáveis movimentos de terreno, naturalmente dispostos para receber as obras primas da arquitetura selenita.

Ali, desenhava-se um local propício para a construção de um templo; aqui, o lugar próprio para um fórum; além, o que poderia comparar-se aos alicerces de um palácio; mais além, o plano de uma cidadela. E tudo isto dominado por uma montanha central. Tratava- se de um vasto circuito, onde a antiga Roma caberia dez vezes!

- Ali! - exclamou Michel Ardan entusiasmado com o que via - Que grandiosa cidade se construiria naquele anel de montanhas! Cidade tranquila, refúgio pacífico, longe de to- das as misérias humanas. Como viveriam ali, calmos e isolados, todos os misantropos, todos os que odeiam a humanidade, todos que se aborrecem com a vida social!

- Todos! Não haveria espaço para tantos... - comentou simplesmente Barbicane.

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