Capitulo XI – Luta contra o impossível


Durante muito tempo, Barbicane e os companheiros olharam mudos e pensativos aquele mundo que apenas tinham visto de longe, como Moisés a terra de Canaã, e de que se afastavam definitivamente. A posição do projétil em relação à Lua modificara-se. A sua base estava naquele momento voltada para a Terra.

Ao verificar tal alteração, Barbicane não deixou de surpreender-se. Se o projétil devia gravitar à volta do satélite, seguindo uma órbita elíptica, por que razão não lhe apresentava a parte mais pesada, como faz a Lua em face da Terra? Havia algo de obscuro nisto.

Pela simples observação da marcha do projétil, podia verificar-se que ele seguia, ao afastar-se da Lua, uma curva idêntica à que havia quando houve a aproximação. Traçava, portanto, uma elipse muito alongada, que se prolongava provavelmente até o ponto de igual atração, onde se neutralizam as influências da Terra e do seu satélite.

Essa foi a conclusão que Barbicane tirou dos fatos observados, conclusão essa foi partilhada pelos seus dois amigos. E logo choveram as perguntas.

- E chegados a esse ponto morto, que nos acontecerá? - perguntou Michel Ardan.

- Isso é uma incógnita - respondeu Barbicane.

- Mas podemos antecipar algumas hipóteses, suponho...

- Duas - precisou Barbicane - ou a velocidade do projétil é insuficiente, e nesse caso ficará eternamente imóvel nessa linha de dupla atração...

- Prefiro a outra, seja qual for - comentou Michel.

- Ou a velocidade é suficiente – prosseguiu Barbicane - e então retomará a rota elícita, e gravitará eternamente à volta do astro da noite.

- Alternativa pouco consoladora - opinou Michel.

- Passar ao estado de humildes servidores de uma Lua que estamos habituados a considerar como nossa serva. Eis o futuro que nos espera.

Barbicane e Nicoles nada disseram.

- Ora, por que se calaram? - continuou o impaciente Michel.

- Mas se não há nada a dizer... - justificou-se Nicoles.

- E não haverá nada a tentar?

- Nada - respondeu Barbicane - Ou pretendes lutar contra o impossível?

- E por que não? Um francês e dois americanos hão de recuar diante de semelhante palavra?

- Mas que queres fazer?

- Dominar este movimento que nos arrasta!

- Dominá-lo?

- Sim - insistiu Michel, entusiasmando-se.

- Travá-lo, modificá-lo, usá-lo, enfim, de maneira a realizarmos os nossos projetos.

- E como?

- O problema é vosso! Os artilheiros que não são senhores dos seus projéteis não são artilheiros. Se for o projétil que manda no artilheiro, o melhor é que o artilheiro se meta dentro do canhão no lugar do projétil. Belos sábios, sim, senhor. Eis que não sabem o que ei de fazer depois de me terem induzido...

- Induzido - exclamaram Barbicane e Nicoles. - Induzido! Que queres dizer?

- Nada de recriminações! - avisou Michel - Eu não me queixo! O passeio tem sabor doce. O projétil convém-me! Mas, por favor, façamos tudo o que for humanamente possível para cairmos em qualquer lugar, já que não o podemos fazer na Lua!

- Mas nós também não queremos outra coisa, meu caro Michel - replicou Barbicane - Só que não temos meios.

- Não podemos modificar o movimento do projétil?

- Não.

- Nem diminuir-lhe a velocidade?

- Não.

- Nem mesmo aliviando-o, como se alivia um navio com excesso de carga?

- Que queres alijar? - perguntou por sua vez Nicoles - Não temos lastro a bordo. E, de resto, parece-me que, se aliviássemos o projétil, a velocidade aumentaria.

- Diminuiria - insistiu Michel.

- Aumentaria - teimou Nicoles.

- Nem diminuiria nem aumentaria - asseverou Barbicane, pondo fim à disputa entre os dois amigos - porque flutuamos no vácuo, onde o peso específico não conta.

- Sendo assim - exclamou resolutamente Michel Ardan - só há uma coisa a fazer.

- O quê? - quis saber Nicoles.

- Almoçar! - respondeu o imperturbável e audacioso francês que propunha sempre esta solução quando se apresentavam as mais difíceis conjunturas.

De fato, se esta operação não podia ter qualquer influência sobre a direção do projétil, podia ser tentada sem inconveniente, e até com muito êxito do ponto de vista do estômago. Decididamente, aquele Michel tinha boas idéias.

Almoçaram, portanto, às duas horas da manhã, mas a hora pouco importava. Michel serviu a habitual refeição, coroada com uma preciosa garrafa da sua reserva secreta. Se, depois disto, as idéias não lhes brotassem do cérebro, seria de pôr em dúvida a qualidade do Chamberti.

Terminada a refeição, recomeçaram as observações. Em volta do projétil mantinham-se, a uma distância invariável, os objetos que haviam sido alijados. Era evidente que o projétil, no seu movimento de translação à volta da Lua, não atravessara nenhuma atmosfera, porque o peso específico daqueles diferentes objetos lhes teria alterado a marcha relativa.

Do lado do esferóide terrestre nada havia a assinalar. A Terra, que fora “nova” na véspera à meia-noite, tinha apenas um dia. Seria necessário que decorressem mais dois dias para que o seu crescente, desembaraçado dos raios solares, viesse servir de relógio aos selenitas, visto que, mercê do movimento de rotação, cada um dos seus pontos passam de vinte e quatro em vinte e quatro horas pelo mesmo meridiano da Lua.

Do lado da Lua o espetáculo era diferente. O astro brilhava em todo o seu esplendor, no meio de inumeráveis constelações, sem que os seus raios lhes diminuíssem a pureza. No disco, as planícies retomavam já aquele tom escuro que se vê da Terra. O resto do nimbo continuava cintilante, e, no meio de toda aquela cintilação, destacava-se ainda Ticho, como um sol.

Barbicane não tinha maneira de avaliar a velocidade do projétil, mas o raciocínio demonstrava-lhe que essa velocidade devia decrescer uniformemente, de acordo com as leis da mecânica racional.

O admitido foi que o projétil ia descrever uma órbita à volta da Lua, essa órbita tinha de ser necessariamente elíptica; A ciência assim o demonstra. Nenhum móvel que gravite em volta de um corpo atraente escapa a essa lei. Todas as órbitas descritas no espaço são elíptica, tanto as dos satélites em volta dos planetas, quanto as dos planetas em volta do Sol, como ainda a do Sol em volta de algum astro desconhecido. Por que razão o projétil do Clube do Canhão contrariava esta disposição natural?

Ora, nas órbitas elípticas o corpo atraente ocupa sempre um dos focos da elipse. Há, portanto, um momento em que o satélite está mais próximo, e outro em que se encontra mais afastado do astro em volta do qual gravita. Quando a Terra está mais perto do Sol, diz-se que se encontra no periélio, e no afélio no caso contrário. Com a Lua passa-se algo idêntico: dizemos que está no perigeu ou no apogeu consoante e se encontre mais próxima ou mais distante da Terra. Se o projétil se tornasse satélite da Lua e quiséssemos usar expressões análogas, com as quais se enriquecerá a linguagem dos astrônomos, deveríamos dizer que atingiria o “aposselenico” no ponto mais distante e o “perisselênico” no mais próximo.

Nesse último caso, o projétil devia atingir o máximo de velocidade; no primeiro, o mínimo. Ora, era evidente que ele se dirigia para o ponto “aposselénico”, pelo que Barbicane tinha razão em pensar que a velocidade havia de decrescer até esse ponto, para depois voltar a aumentar, pouco a pouco, à medida que se aproximasse de novo da Lua. A velocidade chegaria mesmo a ser absolutamente nula se aquele ponto coincidisse com o de igual atração.

Barbicane estudava as consequências dessas diferentes situações para procurar tirar o melhor partido delas quando foi subitamente interrompido por um grito de Michel Ardan.

- Santo Deus! - exclamava ele. - Temos de confessar que somos mesmo estúpidos!

- Não digo que não - disse Barbicane. - Mas por quê?

- Por que temos um meio bem simples de reduzir a velocidade que nos afasta da Lua, e não a usamos!

- E que meio é esse?

- A força de recuo dos nossos foguetes.

- É verdade! – exclamo Nicoles.

- Não a utilizamos - volveu Barbicane - mas vamos utilizá-la.

- Quando? - inquiriu Michel.

- Quando chegar o momento! Reparem, meus amigos que, na posição em que está o projétil, posição ainda oblíqua em relação ao disco lunar, os foguetes poderiam alterar-lhe a direção e afastá-lo em vez de aproximá-lo da Lua. Ora, eu creio que é a Lua que pretendem atingir. Não é verdade?

- De preferência - respondeu Michel.

- Então esperem. Por qualquer razão inexplicável, o projétil tende a voltar a base para em direção à Terra. É provável que, no ponto de igual atração, o seu chapéu cônico esteja rigorosamente apontado para a Lua. Nesse momento, é também possível que a velocidade seja nula. Esse será o instante de agir; e, com a ajuda dos nossos foguetes, talvez possamos provocar uma queda direta na superfície do disco lunar.

- Bravo! - entusiasmou-se Michel.

- O que não fizemos nem poderíamos ter feito na nossa primeira passagem pelo ponto neutro, porque o projétil estava ainda animado de uma velocidade muito elevada. –

- Bem pensado - disse Nicoles.

- Aguardemos pacientemente - prosseguiu Barbicane - Coloquemos todos os trunfos do nosso lado. Depois de tanto ter desesperado, começo a acreditar que alcançaremos o nosso objetivo!

Este otimismo provocou os sonoros vivas de Michel Ardan. E nenhum daqueles audazes loucos se recordava já das perguntas a que tinham dado uma resposta negativa: “Não, A Lua não é habitada! Não! A Lua nem decididamente é habitável!” E, não obstante, iam fazer tudo para lá chegar!

Faltava resolver um único problema: em que momento preciso atingiria o projétil o ponto de igual atração, momento esse em que os viajantes arriscariam tudo? 

Para calcular, com a diferença de alguns segundos, esse momento, Barbicane não tinha outras opções além de recorrer às suas notas de viagem e extrair delas as diferentes alturas tomadas nos paralelos lunares. Deste modo, o tempo gasto a percorrer a distância que separava o ponto neutro e o pólo sul devia ser igual à distância existente entre o pólo norte e o ponto neutro. As horas que representavam os tempos observados no percurso estavam cuidadosamente anotadas, pelo que o cálculo se tornava fácil.

Barbicane concluiu que o ponto neutro seria atingido à uma hora da madrugada de 8 de dezembro. Eram naquele momento três horas da madrugada de 7 de dezembro. Desta forma, se nada lhe perturbasse a marcha, o projétil atingiria o ponto desejado dentro de vinte e duas horas.

Os foguetes, que tinham sido concebidos para amortecer a queda do projétil na Lua iam então ser utilizados pelos ousados viajantes para obterem um efeito absolutamente contrário. Como quer que fosse, estavam prontos, e nada mais havia a fazer do que esperar pelo momento de lhes lançar fogo.

- Como não há nada que fazer - disse Nicoles - faço uma proposta.

- Que proposta? - perguntou Barbicane - Proponho que durmamos

- E isso lá são horas para dormir! - disse Michel Ardan.

- Há quarenta horas que não fechamos os olhos - lembrou Nicoles - Algumas horas de sono ajuda a restabelecer as forças.

- Nunca! - replicou Michel.

- Bem - rematou Nicoles façam o que entenderem! Eu vou dormir!

E, deitando-se no divã, Nicoles não tardou a roncar como uma bala de quarenta e oito.

- Este Nicoles é um homem de juízo - disse Barbicane em seguida - Vou seguir-lhe o exemplo.

Instantes depois ele já companhava o roncar abaritonado do capitão com o seu baixo contínuo.

- Decididamente - ponderou Michel Ardan, quando se viu sozinho - estes homens práticos saem-se às vezes com idéias oportunas.

E, estendendo as compridas pernas, apoiando a cabeça nos seus grandes braços, Michel Ardan acabou também por adormecer.

Todavia, aquele sono não podia se prolongar sossegadamente. No espírito dos três homens agitavam-se demasiadas preocupações, pelo que, algumas horas depois, cerca das sete horas da manhã, estavam todos de pé.

O projétil continuava a afastar-se da Lua, inclinando cada vez mais a sua parte cônica para o astro. Fenômeno inexplicável até então, mas que servia inteiramente aos planos de Barbicane.

Mais dezessete horas e o momento de agir chegaria.

Aquele dia parecia interminável. Por muito audazes que fossem, os viajantes estavam vivamente impressionados com a aproximação daquele instante em que tudo se decidiria: ou cairiam na Lua, ou ficavam eternamente acorrentados a uma órbita imutável.

Contaram, uma a uma, as horas, que passavam com uma lentidão exasperante. Barbicane e Nicoles embrenharam-se obstinadamente nos seus cálculos. Michel passeou de um lado para o outro, no estreito espaço existente entre as paredes do projétil, lançando ávidos olhares ao impassível satélite.

Por vezes, recordações da Terra atravessavam-lhes rapidamente o espírito. Reviam os amigos do Clube do Canhão, sobretudo o que lhes era mais caro, J. T. Maston. Naquele momento, o digno secretário devia estar no seu posto das montanhas Rochosas. Se acaso avistava o projétil no espelho do seu gigantesco telescópio, que pensaria? É que depois de tê-lo visto desaparecer por detrás do pólo sul da Lua, via-o reaparecer pelo pólo norte!

Era, portanto, o satélite de um satélite! Teria J. T. Maston anunciado ao Mundo aquela inesperada notícia? Seria aquele o desfecho da grande empreitada?...

Entretanto, o dia passou-se sem incidentes. A meia-noite terrestre chegou. O dia 8 de dezembro ia começar. Mais uma hora e o ponto de igual atração seria alcançado. Que velocidade animava então o projétil? Era impossível avaliá-la. Mas nenhum erro iria fazer gorar os cálculos de Barbicane. À uma hora da manhã a velocidade devia ser e seria nula. Por outro lado, outro fenômeno havia de assinalar a passagem do projétil pela linha neutra. Ali, as duas atrações, a terrestre e a lunar, anular-se-iam. Os objetos “deixariam de ter peso”. Esse fato singular, que no percurso da ida tanto surpreendera Barbicane e os companheiros, devia ocorrer de novo no regresso em idênticas condições. Seria nesse exato momento que deviam atuar.

O chapéu cônico estava já sensivelmente voltado para o disco lunar, pelo que o projétil se apresentava na posição ideal para o integral aproveitamento da força de recuo produzida pela impulsão dos foguetes. Os viajantes tinham, portanto, a seu favor todas as probabilidades de êxito. Se a velocidade do projétil fosse completamente anulada no ponto morto, qualquer movimento na direção da Lua, por muito ligeiro que se revelasse, bastaria para provocar a queda na superfície lunar.

- Faltam cinco minutos para uma - revelou Nicoles.

- Está tudo a postos – garantiu Michel Ardan, aproximando uma mecha da chama de gás.

- Espera - disse Barbicane, com o cronômetro na mão. Naquele momento, a gravidade já não produzia qualquer efeito. Os viajantes sentiam-lhe bem a ausência. Estavam muito perto do ponto neutro, se é que não o tinham mesmo atingido...

- Uma hora! - anunciou Barbicane.

Michel Ardan aproximou a mecha inflamada de um rastilho que acionava instantaneamente os foguetes. No interior do projétil não se ouviu nenhuma detonação. Contudo, pelas vigias Barbicane avistou um clarão, que depressa se extinguiu. O projétil experimentou certo abalo que foi sentido no interior.

Os três amigos se olhavam, escutavam sem falar, respirando ofegantes. Era possível ouvir-lhes o bater do coração no meio de tão absoluto silêncio.

- Caímos? - perguntou por fim Michel Ardan.

- Não - respondeu Nicoles - visto que a base do projétil não se voltou para o disco lunar.

Entretanto, Barbicane, que abandonara as vigias, voltou-se para os dois companheiros. Estava horrivelmente pálido, tinha a fronte enrugada e os lábios contraídos.

- Caímos, sim! - disse ele.

- Ah! - exclamou Michel Ardan - Para a Lua?

- Para a Terra! - respondeu Barbicane.

A verdade é que uma tremenda queda começara. A velocidade que o projétil conservava levara-o para além do ponto morto. A explosão dos foguetes não o sustivera. Essa velocidade, que na ida arrastara o projétil para fora da linha neutra, arrastava-o ainda no regresso. A física impunha que, na sua órbita elíptica, o projétil voltasse a passar por todos os pontos por onde já passara.

Era uma queda terrível, de setenta e oito mil léguas de altura, que nenhuma mola poderia amortecer. De acordo com as leis da balística, o projétil devia se chocar com a Terra com uma velocidade igual ao qual foi animado ao sair do columbiad, ou seja, a uma velocidade de “dezesseis mil metros no último segundo!”.

- Estamos perdidos - disse friamente Nicoles.

- Pois bem, se morrermos - redarguiu Barbicane, com uma espécie de entusiasmo religioso - o resultado da nossa viagem será magnificamente alargado! É o seu próprio segredo que Deus nos revelará! Na outra vida, a alma não necessitará, para saber, de máquinas ou de instrumentos, porque se identificará com a sabedoria eterna!

- De fato - comentou Michel Ardan - o Outro Mundo é bem capaz de nos fazer esquecer esse astro ínfimo que se chama Lua.

Barbicane cruzou os braços sobre o peito, com um movimento de sublime resignação e exclamou:

- Que o Céu nos guarde!

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