O trem, saindo de Great Salt Lake e da estação de Ogden, subiu durante uma hora para o norte, até Weber River, tendo percorrido quase novecentas milhas desde que partira de São Francisco. A partir deste ponto, retomou a direção do leste, através do maciço acidentado dos montes Wahsatch. É nesta parte do território, compreendida entre as montanhas Rochosas propriamente ditas, que os engenheiros americanos lutaram com as maiores dificuldades. Por isso também que nesta porção do trajeto a subvenção do governo subiu para quarenta e oito mil dólares por milha, enquanto tinha sido de dezesseis mil dólares na planície; mas os engenheiros, como já foi dito, não violentaram a natureza, usaram de astúcia com ela, contornando as dificuldades, e para atingir a grande bacia, apenas um túnel, com quatorze mil pés de extensão, foi furado em todo o percurso da rail-road.
Era no lago Salgado mesmo que a estrada de ferro tinha atingido até então sua maior cota de altitute. Desde este ponto, seu perfil descrevia uma curva muito alongada, abaixando-se para o vale do Bitter Creek, para subir até ao ponto onde se dividem as águas do Atlântico e do Pacífico. Os rios eram numerosos nesta região montanhosa. Foi necessário franquear sobre pequenas pontes o Muddy, o Green e outros. Passepartout ia ficando mais impaciente à medida em que se aproximava o fim da viagem. Mas Fix, por sua vez, teria desejado que já tivessem saído desta difícil região. Receava as demoras, acreditava em acidentes, e tinha mais pressa do que o próprio Phileas Fogg para pôr os pés em terra inglesa.
Às dez da noite, o trem parou na estação de Fort Bridger, que deixou quase imediatamente, e, vinte mil milhas mais adiante, entrou no estado de Wyoming – o antigo Dakota – seguindo todo o vale do Bitter Creek, onde se escoa uma parte das águas que formam o sistema hidrográfico do Colorado.
No dia seguinte, 7 de dezembro, houve uma parada de quarto de hora na estação de Green River. A neve tinha caído durante a noite em abundância, mas, misturada com a chuva, e meio derretida, não podia estorvar a marcha do trem. Entretanto, este mau tempo não deixou de inquietar Passepartout, porque a acumulação das neves, atolando as rodas dos vagões, haveria certamente de comprometer a viagem.
– Na verdade, que idéia, dizia-se, meu patrão teve de viajar no inverno! Não poderia ter esperado o verão para aumentar suas possibilidades de êxito?
Mas, neste momento em que o honesto rapaz só se preocupava com o estado do céu e com a queda da temperatura, Mrs. Aouda experimentava receios mais sérios, que provinham de causa bem diversa.
Com efeito, alguns viajantes tinham descido do vagão, e passeavam pela plataforma da estação de Green River, esperando a partida do trem. Ora, pelo vidro, a jovem reconheceu entre eles o coronel Stamp W. Proctor, o americano que tinha se comportado tão grosseiramente com Phileas Fogg durante o meeting de São Francisco. Mrs. Aouda, não querendo ser vista, recuou.
Este fato impressionou extremamente a jovem. Ela tinha se afeiçoado ao homem que, friamente que fosse, lhe dava todos os dias provas da mais absoluta dedicação. Não compreendia, sem dúvida, toda a profundidade do sentimento que lhe inspirava seu salvador, e a este sentimento ainda dava o nome de reconhecimento, mas, sem que soubesse, era mais que isso. Assim seu coração saltou, quando reconheceu o grosseiro personagem a quem Mr. Fogg queria cedo ou tarde pedir uma explicação por sua conduta. Evidentemente, era apenas o acaso que tinha trazido a este trem o coronel Proctor, mas, fosse como fosse, ele estava ali, e era preciso impedir a todo o custo que Phileas Fogg avistasse seu adversário.
Mrs. Aouda, quando o trem se pôs novamente em movimento, aproveitou um momento em que Mr. Fogg dormitava, para colocar Fix e Passepartout a par da situação.
– O tal do Proctor está no trem! exclamou Fix. Pois bem, tenha certeza, madame, antes de se bater com o senhor... com Mr. Fogg, terá de bater-se comigo! Parece-me que, em tudo isto, fui eu quem recebeu os mais graves insultos!
– E, além disso, acrescentou Passepartout, eu me encarrego dele, por mais coronel que seja.
– Senhor Fix, retomou Mrs. Aouda, Mr. Fogg não deixará que ninguém se vingue por ele. É homem, como disse, de voltar à América para procurar seu ofensor. Se, portanto, vê o coronel, não vamos poder impedir um duelo, que pode ter deploráveis resultados. É preciso portanto que ele não o veja.
– Tem razão, madame, respondeu Fix, um duelo poderia pôr tudo a perder. Vencedor ou vencido, Mr. Fogg demorar-se-ia, e...
– E, acrescentou Passepartout, isso faria o jogo dos gentleman do Reform Club. Em quatro dias estaremos em Nova York! Pois bem, se durante quatro dias meu patrão não sair do seu vagão, podemos esperar que o acaso não o ponha cara a cara com este maldito americano, que Deus confunda! Ora, saberemos impedir...
A conversa foi suspensa. Mr. Fogg tinha acordado, e contemplava a campina pelo vidro rajado de neve. Mais tarde, e sem ser ouvido por seu patrão nem por Mrs. Aouda, Passepartout disse ao inspetor de polícia:
– O senhor, realmente, se bateria por ele?
– Farei tudo para levá-lo vivo para a Europa! respondeu simplesmente Fix, em um tom que denotava uma vontade implacável.
Passepartout sentiu um arrepio correr por todo o corpo, mas suas convicções a respeito do patrão não fraquejaram.
E agora, haveria algum meio de reter Mr. Fogg no seu compartimento para prevenir qualquer encontro entre o coronel e ele? Não deveria ser difícil, o gentleman sendo naturalmente pouco dado aos movimentos e pouco curioso. Em todo caso, o agente de polícia julgou ter descoberto esse meio, porque momentos depois dizia a Phileas Fogg:
– São longas e lentas horas, senhor, estas que se passa assim na estrada de ferro.
– Com efeito, respondeu o gentleman, mas elas passam.
– Nos paquetes, retomou o inspetor, não tinha o hábito de jogar uíste?
– Sim, respondeu Phileas Fogg, mas aqui seria difícil. Não tenho nem cartas nem parceiros.
– Oh! as cartas, podemos comprá-las. Vende-se de tudo nos vagões americanos. Quanto aos parceiros, se, por acaso, madame...
– Certamente, senhor, respondeu animadamente a jovem, sei jogar uíste. Faz parte da educação inglesa.
– E eu, retomou Fix, tenho algumas pretenções de jogar bem esse jogo. Ora, nós três e um morto...
– Como quiser, senhor, respondeu Phileas Fogg, encantado em retomar seu jogo favorito – mesmo numa estrada de ferro.
Passepartout foi despachado à procura do stewart e voltou pouco depois com dois baralhos completos, fichas, tentos, e um tabuleiro recoberto de pano. Não faltava nada. O jogo começou. Mrs. Aouda sabia suficientemente o uíste, e até recebeu alguns cumprimentos do severo Phileas Fogg. Quanto ao inspetor, era simplesmente excelente jogador, e digno de sentar-se à frente do gentleman.
– Agora, disse consigo Passepartout, nós o temos seguro. Não se mexe mais!
Às onze da manhã, o trem tinha atingido o ponto onde se dividem as águas dos dois oceanos. Era em Bridger Pass, a uma altura de sete mil quinhentos e oitenta e quatro pés ingleses acima do nível do mar, um dos pontos mais altos do traçado da estrada em sua passagem pelas montanhas Rochosas. Quase duzentas milhas mais adiante, os viajantes achar-se-iam finalmente sobre as extensas pradarias que se estendem até o Atlântico, e que a natureza tornara tão propícias para o estabelecimento de uma via férrea.
Sobre a vertente da bacia atlântica se desenvolviam já os primeiros rios, afluentes e sub-afluents do North Platte River. Todo o horizonte do norte e do leste estava coberto pela imensa cortina semi-circular que forma a porção setentrional das Rocky Mountains, dominada pelo pico de Laramie. Entre esta curvatura e a estrada de ferro estendiam-se vastas planícies abundantemente regadas. À direita da linha férrea sobrepõem-se as primeiras rampas do maciço montanhoso que se arredonda ao sul até às nascentes do rio Arkansas, um dos grandes tributários do Missouri.
Ao meio dia e meia, os viajantes entreviram por instantes o forte Halleck, que comanda esta região. Ainda algumas horas e a travessia das Montanhas Rochosas estaria completa. Podia-se pois esperar que nenhum acidente sinalizaria a passagem do trem por esta difícil região. A neve cessara de cair. O tempo tornara-se frio e seco. Grandes pássaros, assustados pela locomotiva, fugiam ao longe. Nenhuma fera, urso ou lobo, se mostrava na planície. Era o deserto em sua imensa nudez.
Depois de um almoço bastante confortável, servido no próprio vagão, Mr. Fogg e os seus parceiros recomeçavam o interminável uíste, quando violentos apitos se fizeram ouvir. O trem parou.
Passepartout colocou a cabeça para fora e não viu nada que motivasse a parada. Não havia nenhuma estação à vista.
Mrs. Aouda e Fix por um instante recearam que Mr. Fogg pensasse em descer para a via. Mas o gentleman contentou- se em dizer ao criado:
– Veja o que é.
Passepartout saltou para fora do vagão. Uns quarenta passageiros tinham já abandonado os seus lugares, entre eles o coronel Stamp W. Proctor.
O trem tinha parado por causa de um sinal vermelho que impedia a passagem. O maquinista e o condutor, tendo descido, discutiam acaloradamente com um guarda ferroviário, que o chefe de estação de Medicine Bow, a próxima estação, tinha enviado ao encontro do trem. Viajantes tinham-se aproximado e participavam da discussão – entre eles achava-se o mencionado coronel Proctor, com a sua voz alta e seus gestos imperiosos.
Passepartout, tendo se unido ao grupo, ouviu o guarda-ferroviário dizer:
– Não! não há meio de passar! A ponte de Medicine Bow está aluída e não suportaria o peso do trem.
A ponte, de que falavam, era uma ponte pênsil lançada sobre um desfiladeiro, a uma milha de distância do lugar onde o trem tinha parado. No dizer do guarda, ameaçava ruir, muitos dos fios estavam rompidos, e era impossível arriscar sua travessia. O guarda não exagerava de modo algum afirmando que não se poderia passar. E além disso, com os hábitos negligentes dos americanos, pode-se dizer que, quando eles se põem a ser prudentes, é loucura não o ser.
Passepartout, não se atrevendo a ir avisar o seu patrão, escutava, os dentes cerrados, imóvel como uma estátua.
– Ora! bradava o coronel Proctor, não vamos, imagino, ficar aqui a deitar raízes na neve!
– Coronel, respondeu o condutor, telegrafamos para a estação de Omaha pedindo um trem, mas não é provável que chegue a Medicine Bow antes de seis horas.
– Seis horas! exclamou Passepartout.
– Sem dúvida, respondeu o condutor. Além do mais, esse tempo nos será necessário para chegar à estação a pé.
– A pé! exclamaram todos os viajantes.
– Mas a que distância fica essa estação? perguntou um deles ao condutor.
– A doze milhas, do outro lado do rio.
– Doze milhas na neve! exclamou Stamp W. Proctor.
O coronel soltou um monte de pragas, queixando-se da companhia, queixando-se do condutor; e Passepartout, furioso, não estava longe de fazer-lhe coro. Havia aí um obstáculo material contra o qual nada podiam, desta vez, todas as bank-notes de seu patrão.
E tem mais, o desapontamento era geral entre os viajantes, que, sem contar o atraso, se viam obrigados a andar quinze milhas através da planície coberta de neve. Por isso levantou-se logo um borburinho, exclamações, vociferações, que teriam certamente atraído a atenção de Phileas Fogg, se o gentleman não estivesse tão absorto em seu jogo.
Entretanto, Passepartout achou que deveria preveni-lo, e, cabeça baixa, dirigia-se para o vagão, quando o maquinista do trem – um verdadeiro yankee chamado Forster – elevando a voz, disse:
– Senhores, talvez haja um meio de passar.
– Sobre a ponte? respondeu um viajante.
– Sobre a ponte.
– Com nosso trem? perguntou o coronel.
– Com nosso trem.
Passepartout tinha parado, e devorava as palavras do maquinista.
– Mas a ponte ameaça ruir! retomou o condutor.
– Não importa, respondeu Forster. Creio que lançando o trem com sua máxima velocidade, temos algumas chances de passar.
– Diabo! disse Passepartout.
Mas um certo número de viajantes tinha ficado imediatamente seduzido pela proposta. Ela agradava particularmente ao coronel Proctor. Este célebro esquentado achava a coisa muito factível. Lembrou mesmo que engenheiros tinham tido a idéia de passar os rios “sem pontes” com trens rígidos lançados a toda velocidade, etc. E, afinal, todos os interessados na questão se colocaram do lado do maquinista.
– Temos cinquenta probabilidades de passar, dizia um.
– Sessenta, dizia outro.
– Oitenta!... noventa sobre cem!
Passepartout estava aturdido, apesar de se sentir disposto a tentar tudo para fazer a passagem do Medicine Creek, mas a tentativa parecia-lhe um pouco demais “americana”.
– Além disso, pensou, há uma coisa bem mais simples, e esta gente nem sequer pensa nela!...
– Senhor, disse a um dos viajantes, o meio proposto pelo maquinista me parece um pouco arrojado, mas...
– Oitenta probabilidades! respondeu o viajante, que lhe virou as costas.
– Bem sei, respondeu Passepartout dirigindo-se a um outro gentleman, mas uma simples reflexão...
– Nada de reflexão, é inútil! respondeu o americano encolhendo os ombros, o maquinista afirma que passará!
– Sem dúvida, retomou Passepartout, passsará, mas seria talvez mais prudente...
– O que! prudente! exclamou o coronel Proctor, a quem esta palavra, ouvida casualmente, fez dar um pulo. A toda a velocidade, é o que se diz! Compreende? A toda velocidade!
– Eu sei... eu compreendo... repetia Passepartout, a quem ninguém deixava concluir sua frase, mas seria, não digo mais prudente, porque esta palavra desagrada, pelo menos mais natural...
– Quê? o quê? Que quer dizer com esse natural?... exclamaram de todos os lados.
O pobre moço já não sabia quem poderia ouvi-lo.
– Tem medo? perguntou o coronel Proctor.
– Eu! medo! exclamou Passepartout. Bem, que seja. Vou mostrar a esta gente que um francês pode ser tão americano como eles!
– Para o trem! para o trem! exclamava o condutor.
– Sim! para o trem, repetia Passepartout, para o trem! E depressa! Mas não me impedem de pensar que seria mais natural passarmos primeiro a pé pela ponte, nós os viajantes, depois que passasse o trem!...
Mas ninguém ouviu esta sábia reflexão, e ninguém decerto teria querido reconhecer sua correção.
Os viajantes estavam reintegrados em seus vagões. Passepartout retomou o seu lugar, sem nada dizer do que se passara. Os jogadores estavam totalmente absortos no jogo.
A locomotiva apitou vigorosamente. O maquinista, revertendo o vapor, recuou o trem quase uma milha – manobrando como um saltador que quer tomar impulso.
Depois, a um segundo apito, a marcha para a frente recomeçou; acelerou-se; logo a velocidade se tornou amedrontadora; só se ouvia um uivo saindo da locomotiva; os pistões batiam vinte golpes por segundo; os eixos das rodas fumegavam nas caixas de graxa. Sentia-se, por assim dizer, que o trem inteiro, galopando com uma velocidade de cem milhas por hora, não pesava sobre os rails. A velocidade comia o peso.
E passou! Foi como um relâmpago. Nem se viu a ponte. O comboio saltou, pode-se dizer, de uma margem à outra, e o maquinista não conseguiu deter a máquina levada pelo impulso senão cinco milhas além da estação.
Mas mal o trem tinha passado, a ponte, definitivamente arruinada, desmoronava e caía com estrondo no desfiladeiro de Medicine Bow.
Era no lago Salgado mesmo que a estrada de ferro tinha atingido até então sua maior cota de altitute. Desde este ponto, seu perfil descrevia uma curva muito alongada, abaixando-se para o vale do Bitter Creek, para subir até ao ponto onde se dividem as águas do Atlântico e do Pacífico. Os rios eram numerosos nesta região montanhosa. Foi necessário franquear sobre pequenas pontes o Muddy, o Green e outros. Passepartout ia ficando mais impaciente à medida em que se aproximava o fim da viagem. Mas Fix, por sua vez, teria desejado que já tivessem saído desta difícil região. Receava as demoras, acreditava em acidentes, e tinha mais pressa do que o próprio Phileas Fogg para pôr os pés em terra inglesa.
Às dez da noite, o trem parou na estação de Fort Bridger, que deixou quase imediatamente, e, vinte mil milhas mais adiante, entrou no estado de Wyoming – o antigo Dakota – seguindo todo o vale do Bitter Creek, onde se escoa uma parte das águas que formam o sistema hidrográfico do Colorado.
No dia seguinte, 7 de dezembro, houve uma parada de quarto de hora na estação de Green River. A neve tinha caído durante a noite em abundância, mas, misturada com a chuva, e meio derretida, não podia estorvar a marcha do trem. Entretanto, este mau tempo não deixou de inquietar Passepartout, porque a acumulação das neves, atolando as rodas dos vagões, haveria certamente de comprometer a viagem.
– Na verdade, que idéia, dizia-se, meu patrão teve de viajar no inverno! Não poderia ter esperado o verão para aumentar suas possibilidades de êxito?
Mas, neste momento em que o honesto rapaz só se preocupava com o estado do céu e com a queda da temperatura, Mrs. Aouda experimentava receios mais sérios, que provinham de causa bem diversa.
Com efeito, alguns viajantes tinham descido do vagão, e passeavam pela plataforma da estação de Green River, esperando a partida do trem. Ora, pelo vidro, a jovem reconheceu entre eles o coronel Stamp W. Proctor, o americano que tinha se comportado tão grosseiramente com Phileas Fogg durante o meeting de São Francisco. Mrs. Aouda, não querendo ser vista, recuou.
Este fato impressionou extremamente a jovem. Ela tinha se afeiçoado ao homem que, friamente que fosse, lhe dava todos os dias provas da mais absoluta dedicação. Não compreendia, sem dúvida, toda a profundidade do sentimento que lhe inspirava seu salvador, e a este sentimento ainda dava o nome de reconhecimento, mas, sem que soubesse, era mais que isso. Assim seu coração saltou, quando reconheceu o grosseiro personagem a quem Mr. Fogg queria cedo ou tarde pedir uma explicação por sua conduta. Evidentemente, era apenas o acaso que tinha trazido a este trem o coronel Proctor, mas, fosse como fosse, ele estava ali, e era preciso impedir a todo o custo que Phileas Fogg avistasse seu adversário.
Mrs. Aouda, quando o trem se pôs novamente em movimento, aproveitou um momento em que Mr. Fogg dormitava, para colocar Fix e Passepartout a par da situação.
– O tal do Proctor está no trem! exclamou Fix. Pois bem, tenha certeza, madame, antes de se bater com o senhor... com Mr. Fogg, terá de bater-se comigo! Parece-me que, em tudo isto, fui eu quem recebeu os mais graves insultos!
– E, além disso, acrescentou Passepartout, eu me encarrego dele, por mais coronel que seja.
– Senhor Fix, retomou Mrs. Aouda, Mr. Fogg não deixará que ninguém se vingue por ele. É homem, como disse, de voltar à América para procurar seu ofensor. Se, portanto, vê o coronel, não vamos poder impedir um duelo, que pode ter deploráveis resultados. É preciso portanto que ele não o veja.
– Tem razão, madame, respondeu Fix, um duelo poderia pôr tudo a perder. Vencedor ou vencido, Mr. Fogg demorar-se-ia, e...
– E, acrescentou Passepartout, isso faria o jogo dos gentleman do Reform Club. Em quatro dias estaremos em Nova York! Pois bem, se durante quatro dias meu patrão não sair do seu vagão, podemos esperar que o acaso não o ponha cara a cara com este maldito americano, que Deus confunda! Ora, saberemos impedir...
A conversa foi suspensa. Mr. Fogg tinha acordado, e contemplava a campina pelo vidro rajado de neve. Mais tarde, e sem ser ouvido por seu patrão nem por Mrs. Aouda, Passepartout disse ao inspetor de polícia:
– O senhor, realmente, se bateria por ele?
– Farei tudo para levá-lo vivo para a Europa! respondeu simplesmente Fix, em um tom que denotava uma vontade implacável.
Passepartout sentiu um arrepio correr por todo o corpo, mas suas convicções a respeito do patrão não fraquejaram.
E agora, haveria algum meio de reter Mr. Fogg no seu compartimento para prevenir qualquer encontro entre o coronel e ele? Não deveria ser difícil, o gentleman sendo naturalmente pouco dado aos movimentos e pouco curioso. Em todo caso, o agente de polícia julgou ter descoberto esse meio, porque momentos depois dizia a Phileas Fogg:
– São longas e lentas horas, senhor, estas que se passa assim na estrada de ferro.
– Com efeito, respondeu o gentleman, mas elas passam.
– Nos paquetes, retomou o inspetor, não tinha o hábito de jogar uíste?
– Sim, respondeu Phileas Fogg, mas aqui seria difícil. Não tenho nem cartas nem parceiros.
– Oh! as cartas, podemos comprá-las. Vende-se de tudo nos vagões americanos. Quanto aos parceiros, se, por acaso, madame...
– Certamente, senhor, respondeu animadamente a jovem, sei jogar uíste. Faz parte da educação inglesa.
– E eu, retomou Fix, tenho algumas pretenções de jogar bem esse jogo. Ora, nós três e um morto...
– Como quiser, senhor, respondeu Phileas Fogg, encantado em retomar seu jogo favorito – mesmo numa estrada de ferro.
Passepartout foi despachado à procura do stewart e voltou pouco depois com dois baralhos completos, fichas, tentos, e um tabuleiro recoberto de pano. Não faltava nada. O jogo começou. Mrs. Aouda sabia suficientemente o uíste, e até recebeu alguns cumprimentos do severo Phileas Fogg. Quanto ao inspetor, era simplesmente excelente jogador, e digno de sentar-se à frente do gentleman.
– Agora, disse consigo Passepartout, nós o temos seguro. Não se mexe mais!
Às onze da manhã, o trem tinha atingido o ponto onde se dividem as águas dos dois oceanos. Era em Bridger Pass, a uma altura de sete mil quinhentos e oitenta e quatro pés ingleses acima do nível do mar, um dos pontos mais altos do traçado da estrada em sua passagem pelas montanhas Rochosas. Quase duzentas milhas mais adiante, os viajantes achar-se-iam finalmente sobre as extensas pradarias que se estendem até o Atlântico, e que a natureza tornara tão propícias para o estabelecimento de uma via férrea.
Sobre a vertente da bacia atlântica se desenvolviam já os primeiros rios, afluentes e sub-afluents do North Platte River. Todo o horizonte do norte e do leste estava coberto pela imensa cortina semi-circular que forma a porção setentrional das Rocky Mountains, dominada pelo pico de Laramie. Entre esta curvatura e a estrada de ferro estendiam-se vastas planícies abundantemente regadas. À direita da linha férrea sobrepõem-se as primeiras rampas do maciço montanhoso que se arredonda ao sul até às nascentes do rio Arkansas, um dos grandes tributários do Missouri.
Ao meio dia e meia, os viajantes entreviram por instantes o forte Halleck, que comanda esta região. Ainda algumas horas e a travessia das Montanhas Rochosas estaria completa. Podia-se pois esperar que nenhum acidente sinalizaria a passagem do trem por esta difícil região. A neve cessara de cair. O tempo tornara-se frio e seco. Grandes pássaros, assustados pela locomotiva, fugiam ao longe. Nenhuma fera, urso ou lobo, se mostrava na planície. Era o deserto em sua imensa nudez.
Depois de um almoço bastante confortável, servido no próprio vagão, Mr. Fogg e os seus parceiros recomeçavam o interminável uíste, quando violentos apitos se fizeram ouvir. O trem parou.
Passepartout colocou a cabeça para fora e não viu nada que motivasse a parada. Não havia nenhuma estação à vista.
Mrs. Aouda e Fix por um instante recearam que Mr. Fogg pensasse em descer para a via. Mas o gentleman contentou- se em dizer ao criado:
– Veja o que é.
Passepartout saltou para fora do vagão. Uns quarenta passageiros tinham já abandonado os seus lugares, entre eles o coronel Stamp W. Proctor.
O trem tinha parado por causa de um sinal vermelho que impedia a passagem. O maquinista e o condutor, tendo descido, discutiam acaloradamente com um guarda ferroviário, que o chefe de estação de Medicine Bow, a próxima estação, tinha enviado ao encontro do trem. Viajantes tinham-se aproximado e participavam da discussão – entre eles achava-se o mencionado coronel Proctor, com a sua voz alta e seus gestos imperiosos.
Passepartout, tendo se unido ao grupo, ouviu o guarda-ferroviário dizer:
– Não! não há meio de passar! A ponte de Medicine Bow está aluída e não suportaria o peso do trem.
A ponte, de que falavam, era uma ponte pênsil lançada sobre um desfiladeiro, a uma milha de distância do lugar onde o trem tinha parado. No dizer do guarda, ameaçava ruir, muitos dos fios estavam rompidos, e era impossível arriscar sua travessia. O guarda não exagerava de modo algum afirmando que não se poderia passar. E além disso, com os hábitos negligentes dos americanos, pode-se dizer que, quando eles se põem a ser prudentes, é loucura não o ser.
Passepartout, não se atrevendo a ir avisar o seu patrão, escutava, os dentes cerrados, imóvel como uma estátua.
– Ora! bradava o coronel Proctor, não vamos, imagino, ficar aqui a deitar raízes na neve!
– Coronel, respondeu o condutor, telegrafamos para a estação de Omaha pedindo um trem, mas não é provável que chegue a Medicine Bow antes de seis horas.
– Seis horas! exclamou Passepartout.
– Sem dúvida, respondeu o condutor. Além do mais, esse tempo nos será necessário para chegar à estação a pé.
– A pé! exclamaram todos os viajantes.
– Mas a que distância fica essa estação? perguntou um deles ao condutor.
– A doze milhas, do outro lado do rio.
– Doze milhas na neve! exclamou Stamp W. Proctor.
O coronel soltou um monte de pragas, queixando-se da companhia, queixando-se do condutor; e Passepartout, furioso, não estava longe de fazer-lhe coro. Havia aí um obstáculo material contra o qual nada podiam, desta vez, todas as bank-notes de seu patrão.
E tem mais, o desapontamento era geral entre os viajantes, que, sem contar o atraso, se viam obrigados a andar quinze milhas através da planície coberta de neve. Por isso levantou-se logo um borburinho, exclamações, vociferações, que teriam certamente atraído a atenção de Phileas Fogg, se o gentleman não estivesse tão absorto em seu jogo.
Entretanto, Passepartout achou que deveria preveni-lo, e, cabeça baixa, dirigia-se para o vagão, quando o maquinista do trem – um verdadeiro yankee chamado Forster – elevando a voz, disse:
– Senhores, talvez haja um meio de passar.
– Sobre a ponte? respondeu um viajante.
– Sobre a ponte.
– Com nosso trem? perguntou o coronel.
– Com nosso trem.
Passepartout tinha parado, e devorava as palavras do maquinista.
– Mas a ponte ameaça ruir! retomou o condutor.
– Não importa, respondeu Forster. Creio que lançando o trem com sua máxima velocidade, temos algumas chances de passar.
– Diabo! disse Passepartout.
Mas um certo número de viajantes tinha ficado imediatamente seduzido pela proposta. Ela agradava particularmente ao coronel Proctor. Este célebro esquentado achava a coisa muito factível. Lembrou mesmo que engenheiros tinham tido a idéia de passar os rios “sem pontes” com trens rígidos lançados a toda velocidade, etc. E, afinal, todos os interessados na questão se colocaram do lado do maquinista.
– Temos cinquenta probabilidades de passar, dizia um.
– Sessenta, dizia outro.
– Oitenta!... noventa sobre cem!
Passepartout estava aturdido, apesar de se sentir disposto a tentar tudo para fazer a passagem do Medicine Creek, mas a tentativa parecia-lhe um pouco demais “americana”.
– Além disso, pensou, há uma coisa bem mais simples, e esta gente nem sequer pensa nela!...
– Senhor, disse a um dos viajantes, o meio proposto pelo maquinista me parece um pouco arrojado, mas...
– Oitenta probabilidades! respondeu o viajante, que lhe virou as costas.
– Bem sei, respondeu Passepartout dirigindo-se a um outro gentleman, mas uma simples reflexão...
– Nada de reflexão, é inútil! respondeu o americano encolhendo os ombros, o maquinista afirma que passará!
– Sem dúvida, retomou Passepartout, passsará, mas seria talvez mais prudente...
– O que! prudente! exclamou o coronel Proctor, a quem esta palavra, ouvida casualmente, fez dar um pulo. A toda a velocidade, é o que se diz! Compreende? A toda velocidade!
– Eu sei... eu compreendo... repetia Passepartout, a quem ninguém deixava concluir sua frase, mas seria, não digo mais prudente, porque esta palavra desagrada, pelo menos mais natural...
– Quê? o quê? Que quer dizer com esse natural?... exclamaram de todos os lados.
O pobre moço já não sabia quem poderia ouvi-lo.
– Tem medo? perguntou o coronel Proctor.
– Eu! medo! exclamou Passepartout. Bem, que seja. Vou mostrar a esta gente que um francês pode ser tão americano como eles!
– Para o trem! para o trem! exclamava o condutor.
– Sim! para o trem, repetia Passepartout, para o trem! E depressa! Mas não me impedem de pensar que seria mais natural passarmos primeiro a pé pela ponte, nós os viajantes, depois que passasse o trem!...
Mas ninguém ouviu esta sábia reflexão, e ninguém decerto teria querido reconhecer sua correção.
Os viajantes estavam reintegrados em seus vagões. Passepartout retomou o seu lugar, sem nada dizer do que se passara. Os jogadores estavam totalmente absortos no jogo.
A locomotiva apitou vigorosamente. O maquinista, revertendo o vapor, recuou o trem quase uma milha – manobrando como um saltador que quer tomar impulso.
Depois, a um segundo apito, a marcha para a frente recomeçou; acelerou-se; logo a velocidade se tornou amedrontadora; só se ouvia um uivo saindo da locomotiva; os pistões batiam vinte golpes por segundo; os eixos das rodas fumegavam nas caixas de graxa. Sentia-se, por assim dizer, que o trem inteiro, galopando com uma velocidade de cem milhas por hora, não pesava sobre os rails. A velocidade comia o peso.
E passou! Foi como um relâmpago. Nem se viu a ponte. O comboio saltou, pode-se dizer, de uma margem à outra, e o maquinista não conseguiu deter a máquina levada pelo impulso senão cinco milhas além da estação.
Mas mal o trem tinha passado, a ponte, definitivamente arruinada, desmoronava e caía com estrondo no desfiladeiro de Medicine Bow.
Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/ |
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