Capítulo IX - Michel Ardan


Os grandes trabalhos empreendidos pelo Clube do Canhão estavam, por assim dizer, terminados, entretanto iriam decorrer ainda dois meses antes de chegar o dia em que o projéctil seria lançado para a Lua. Dois meses que deviam parecer longos como anos para a impaciência universal!

Até então as mínimas peripécias da operação tinham sido diariamente reproduzidas pelos jornais, que eram devorados com um olhar ávido e apaixonado; mas era de temer que daí em diante esse “dividendo de notícias e interesses” distribuído pelo público fosse diminuindo, e todos se assustavam por ver desaparecer a sua parte de emoções quotidianas.

No entanto, isso não sucedeu; o incidente mais inesperado, mais extraordinário, mais incrível, veio de novo fanatizar os espíritos e lançar o Mundo numa excitação pungente.

No dia 30 de setembro, às três horas e quarenta e sete minutos da noite, um telegrama, transmitido pelo cabo submarino entre Valentia (Irlanda), a Terra Nova e a costa americana, chegou endereçado ao Presidente Barbicane.

O digno presidente abriu o envelope, leu o telegrama e, apesar de todo o autodomínio, os seus lábios empalideceram e os olhos perturbaram-se com a leitura das palavras desse telegrama.

Eis o texto desse despacho, que agora figura nos arquivos do Clube do Canhão:

“França, Paris
30 de setembro, quatro horas da manhã.

Para Barbicane, Tampa, Flórida - Estados Unidos

Substitua o obus por um projéctil cilindro cônico. Partirei dentro. Chegarei no vapor Atlanta.

Michel Ardan.”

Se aquela notícia fulminante, em vez de voar sobre os fios elétricos, tivesse chegado simplesmente pelo correio, num envelope fechado, se os empregados franceses, irlandeses, da Terra Nova, americanos, não tivessem necessariamente conhecimento do telegrama, Barbicane não teria hesitado um só momento. Ter-se-ia calado por medida de prudência para não desconsiderar a sua obra. Aquele telegrama podia esconder uma mistificação, sobretudo vindo da parte de um francês. Era preciso que um homem fosse muito audacioso para conceber sequer a idéia de tal viagem. E, se esse homem existia, não seria um louco que urgia encerrar numa cela e não numa bala?

Todavia, o telegrama era conhecido, pois os aparelhos de transmissão são pouco discretos por natureza. A proposta de Michel Ardan corria já pelos diversos Estados da União. Assim, Barbicane não tinha qualquer motivo para se calar. Reuniu, portanto, os seus colegas presentes em Tampa e limitou-se a ler friamente o lacônico texto, sem deixar em evidência os seus pensamentos e também sem discutir o crédito que o telegrama pudesse merecer,

- Não é possível! É inverossímil! Pura brincadeira! Troçaram de nós! Ridículo! Absurdo! - Toda a série de expressões que servem para exprimir a dúvida, a incredulidade, a tolice, a loucura prosseguiu durante vários minutos, gestos que habitualmente acompanham essas expressões. Cada um sorria, ria, encolhia os ombros ou ficava às gargalhadas, conforme a sua disposição.

Só J. T. Maston teve estas palavras soberbas:

- É uma idéia!

- Sim - respondeu-lhe o major - mas, se algumas vezes nos é permitido ter idéias como esta, é com a condição de nem sequer pensar em pô-las em execução.

- E por que não? - replicou vivamente o secretário do Clube do Canhão, pronto para discutir. Mas não quiseram excitá-lo mais.

No entanto, o nome de Michel Ardan circulava já na cidade de Tampa. Os estrangeiros e os nativos olhavam-se e diziam graças, não a respeito desse europeu - um mito, um indivíduo quimérico - mas a respeito de J. T. Maston, que acreditava na existência dessa personagem lendária.

Quando Barbicane propôs o envio de um projéctil à Lua todos acharam natural, praticável, um puro assunto de balística! Mas se um ser racional se oferecesse para embarcar nesse projéctil a fim de tentar essa viagem inverossímil a proposta era tratada como fantasista, uma brincadeira, uma farsa, e, para utilizar uma palavra de que os franceses têm a tradução exata na sua linguagem familiar, um humbug (mistificação).

As troças duraram até a noite e pode dizer-se que toda a América do Norte foi tomada de riso, o que não é nada habitual num país em que as ‘empresas impossíveis’ encontram facilmente adeptos, partidários.

No entanto, a proposta de Michel Ardan, como todas as idéias inovadoras, não deixava de perturbar certos espíritos. Isto alterava o curso das emoções habituais; “Não tínhamos pensado nisto!” e esse incidente tornou-se em breve uma obsessão pela sua própria estranheza. Pensavam nele. “Quantas coisas negadas na véspera que o dia seguinte tornou realidade!” ou “Por que razão não se faria um dia essa viagem?”. Em todo caso, porém, o homem que assim queria arriscar-se devia ser louco, e decididamente, o seu projeto não podia ser levado a sério; teria sido melhor calar-se, em vez de perturbar toda a gente com as suas fantasias ridículas.

Porém, antes de qualquer coisa, existiria realmente essa personagem? Grande pergunta! Aquele nome, “Michel Ardan”, não era desconhecido na América! Pertencia a um europeu muito citado pelos seus empreendimentos audaciosos. Depois, o telegrama lançado através das profundezas do Atlântico, essa designação do navio em que viajava, a data da chegada próxima - todas essas circunstâncias davam à proposta um certo caráter de verossimilhança. Era preciso esclarecer o caso.

Em breve, os indivíduos isolados reuniram-se em grupos; os grupos foram-se condensando sob a influência da curiosidade, como átomos em virtude da atração molecular, e, finalmente, resultou daí uma multidão compacta que se dirigiu para a residência do Presidente Barbicane.

Este, desde a chegada do telegrama, não tinha se pronunciado; havia permitido que se divulgasse a opinião de J. T. Maston, sem manifestar aprovação nem censura; mantinha-se calado e propunha-se esperar pelos acontecimentos; mas não contava com a impaciência pública, e foi com um olhar satisfeito que viu a população de Tampa amontoar-se sob as suas janelas. Em breve, os murmúrios e as vociferações o obrigaram a aparecer.

Vemos que ele tinha todos os privilégios e, por consequência, todos os aborrecimentos da celebridade. 

O presidente apareceu então à janela. Fez-se silêncio, e um cidadão, tomando a palavra, fez-lhe claramente a pergunta seguinte:

- A personagem chamada Michel Ardan vem ou não a caminho da América?

- Senhores - respondeu Barbicane - sei tanto quanto vós.

- É preciso sabê-lo! - exclamaram vozes impacientes.

- O tempo não tem o direito de manter um país inteiro suspenso - replicou o orador - Modificou os planos do projéctil como pede o telegrama?

- Ainda não, senhores; mas têm razão, temos de saber com o que contamos. O telégrafo, que causou toda esta emoção, poderá dar-nos as informações que nos faltam.

- Ao telégrafo! Ao telégrafo! - gritou a multidão.

Barbicane desceu e, precedendo a imensa multidão, dirigiu-se para os escritórios da administração.

Alguns minutos mais tarde, era enviado um telegrama para o escritório dos armadores de navios de Liverpool. Pedia resposta às seguintes perguntas:

“Que espécie de navio é o Atlanta?”

“Quando deixou a Europa?”

“Traz a bordo um francês chamado Michel Ardan?”

Duas horas depois Barbicane recebia informações de uma precisão que não dava lugar à menor dúvida.

“O navio Atlanta, de Liverpool, partiu a 2 de outubro para Tampa e leva a bordo um francês inscrito no livro dos passageiros com o nome de Michel Ardan.”

Ao ter a confirmação do primeiro telegrama, os olhos do presidente brilharam com uma chama súbita, os seus punhos fecharam-se violentamente e ouviram-no murmurar:

- É então verdade! É, portanto, possível! Esse francês existe! E dentro de quinze dias estará aqui! Mas é um louco! Um cérebro inflamado!... Nunca consentirei...

No entanto, nessa mesma noite escrevia para a casa Breadwill & Cia, pedindo-lhe que suspendesse até nova ordem a fundição do projétil.

No dia 20 de outubro, às nove horas da manhã, os faróis do Canal das Baamas assinalavam uma espessa fumaça no horizonte. Duas horas mais tarde, um grande barco a vapor trocava com eles sinais de reconhecimento. Imediatamente, o nome do Atlanta foi enviado para Tampa. Às quatro horas, o navio inglês dava entrada na Baía do Espírito Santo. Às cinco passava na Enseada de Hillisboro a todo o vapor. Às seis, ancorava no porto de Tampa.
A âncora ainda não tinha alcançado o fundo de areia e já quinhentas embarcações rodeavam o Atlanta, e o navio era tomado de assalto. Barbicane foi o primeiro a saltar na amurada do navio e, com uma voz cuja emoção ele queria em vão esconder, exclamava:

- Michel Ardan

- Presente! - respondeu um indivíduo que se encontrava no castelo da popa.

Barbicane, de braços cruzados, de olhar interrogador, olhava silenciosamente o passageiro do Atlanta.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Os discípulos de Lavater ou de Gratiolet teriam visualizado sem dificuldade no crânio e na fisionomia dessa personagem sinais indiscutíveis de combatividade, isto é, coragem no perigo e tendência para deitar abaixo obstáculos; sinais de benevolência e atração pelo maravilhoso, instinto que leva certas pessoas a se apaixonarem pelas coisas sobre-humanas; mas, em compensação, as tendências de possessividade, dessa necessidade instintiva de possuir e de adquirir, faltavam-lhe por completo.

Para concluirmos o tipo físico do passageiro do Atlanta, convêm assinalar que as suas roupas eram largas, confortáveis, com as calças e o casaco feitos com muito tecido, de tal modo que Michel Ardan denominava-se como “o mata-pano”, a gravata larga, o colarinho da camisa aberto, de onde saía um pescoço robusto. Usava normalmente os punhos da camisa desabotoados, deixando em monstra mãos febris. Sentia-se que, mesmo no mais forte inverno ou nos perigos, aquele homem nunca teria frio nem sequer nos olhos.

De resto, no tombadilho do barco, no meio da multidão, ele ia e vinha não estando nunca quieto - “navegando sobre as amarras”, como dizem os marinheiros - gesticulando, tratando toda a gente por ‘tu’ e roendo as unhas com uma avidez nervosa; era um desses originais que o Criador inventa num momento de fantasia quebrando o molde logo a seguir.

Realmente, a personalidade moral de Michel Ardan oferecia um largo campo às observações do analista. Esse homem espantoso vivia numa eterna disposição para a hipérbole e não tinha ainda ultrapassado a idade dos superlativos: os objetos surgiam na retina dos seus olhos com dimensões desmedidas; daí uma gigantesca associação de idéias; via tudo em grande, exceto as dificuldades e os homens.

Era de resto uma natureza luxuriante, um artista por instinto, uma natureza espiritual que não fazia fogo cerrado de ditos chistosos, mas que sabia esgrimir, como um hábil atirador, em qualquer conversa.

Nas discussões preocupava-se pouco com a lógica, era rebelde aos silogismos, que nunca teria inventado, e tinha argumentos próprios. Sendo um verdadeiro quebra-vidros, lançava em pleno peito argumentos aos homens com efeito seguro, e gostava de defender a todo o custo as causas desesperadas.

Entre outras manias, tinha a de se declarar “um ignorante sublime” como Shakespeare, e fazia profissão de menosprezar os sábios: “São pessoas”, dizia, “que apenas marcam os pontos quando nós é que jogamos a partida.”

Era, em resumo, um boêmio do país dos montes e das maravilhas, aventuroso, mas não aventureiro, um Faetonte conduzindo o carro do Sol, um Ícaro com asas sobressalentes. De resto, era um homem que arriscava a sério a própria pessoa e lançava-se de cabeça nos mais loucos empreendimentos. Queimava os seus navios com mais pressa que Agátocles, e, pronto a arriscar a pele a todo o momento, acabava sempre por cair de pé, como esses bonecos joão-teimoso com que as crianças se divertem.

Todavia, esse homem empreendedor tinha os defeitos próprios das suas qualidades!

Quem não arrisca não petisca, se diz por aí. Mas Ardan arriscava muitas vezes sem nada conseguir. Era um perdulário, um tonel das Danaides. Homem perfeitamente desinteressado, de resto, tinha tão bom coração quanto cabeça.

Prestável, cavalheiresco, seria incapaz de assinar a sentença de morte do seu mais cruel inimigo, e vender-se-ia a si mesmo como escravo para resgatar um negro.

Na França, na Europa, toda a gente conhecia essa brilhante e barulhenta personagem. “Não vivia numa casa de vidro tomando o universo inteiro por confidente dos seus mais íntimos segredos?”

Entretanto, possuía também uma admirável coleção de inimigos, entre aqueles que ele tinha mais ou menos ferido, atirado abaixo sem piedade, acotovelando-os para abrir passa em por entre a multidão.

No entanto, geralmente gostavam dele e tratavam-no como criança mimada. Era, segundo a expressão popular, um homem “para pegar ou largar”, e o caso é que lhe pegavam. Todos se interessavam pelas suas enormes ousadias.

A contemplação a que se entregava o presidente do Clube do Canhão em presença daquele rival que o vinha relegar para segundo plano foi rapidamente interrompida pelos vivas e hurras da multidão. Esses gritos tornaram-se mesmo tão frenéticos e o entusiasmo tomou formas tão pessoais que Michel Ardan, depois de ter apertado centenas de mãos, nas quais quase ia deixando os seus dez dedos, teve de se ir refugiar na sua cabina.

Barbicane o seguiu sem ter pronunciado uma só palavra.

- É Barbicane? - perguntou-lhe Michel Ardan, quando ficaram a sós, no tom em que teria falado a um amigo de décadas.

- Sim - respondeu o presidente do Clube do Canhão.

- Bem! Bom dia, Barbicane. Como vai isso? Muito bem?
Então tanto melhor! Tanto melhor!

- Então - disse Barbicane entrando logo no assunto - está mesmo decidido a partir?

- Absolutamente decidido.

- Nada o deterá?

- Nada. Modificou o seu projétil como eu pedia em meu telegrama?

- Esperava a sua chegada. Mas - perguntou Barbicane, insistindo de novo - refletiu bem?...
- Se refleti? Tenho algum tempo a perder, não é? Vejo a ocasião de ir dar um passeio à Lua e aproveito-a, mais nada. Parece-me que o caso não merece muitas reflexões.

Barbicane devorava com o olhar aquele homem que falava do seu projeto de viagem com uma leviandade, uma despreocupação tão completa e uma tão perfeita ausência de inquietações.

- Mas, pelo menos - disse-lhe - tem um plano, meios de execução?

- Excelentes, meu caro Barbicane, Mas permita-me que lhe faça uma observação: gosto de contar a minha história de uma só vez a toda a gente e que não se fale mais nisso. Isso evitará as repetições. Portanto, salvo melhor opinião, convoque os seus amigos, os seus colegas, toda a cidade, toda a Flórida, toda a América, se quiser, e amanhã estarei pronto a expor os meus meios e a responder a todas as objeções, sejam elas quais forem. Isto lhe convém?

- Convém - respondeu Barbicane.

- Então, o presidente saiu da cabina e comunicou à multidão a proposta de Michel Ardan. As suas palavras foram acolhidas com exclamações de alegria. Isso evitava qualquer dificuldade. No dia seguinte, todos poderiam contemplar à sua vontade o herói europeu. No entanto, alguns espectadores mais obstinados não quiserem deixar a ponte do Atlanta. Passaram a noite a bordo. Entre outros. J. T. Maston, que tinha atarraxado o gancho na amurada do convés e seria preciso um cabrestante para tirá-lo de lá.

- É um herói! - exclamava em todos os tons - e nós não passamos de umas mulherzinhas aos pés desse europeu!

Quanto a Barbicane, depois de ter convidado os visitantes a retirarem-se, voltou para a cabina do passageiro, e só saiu de lá à meia-noite.

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