Fim de ano...

Estamos chegando a mais um final de ano, o primeiro da Biblioteca Júlio Verne. Nesses primeiros meses de existência, a BJV já ultrapassou seus objetivos iniciais. Criada por um jovem verniano brasileiro que adora ler as obras do escritor francês Júlio Verne, a Biblioteca enfrentou dificuldades diversas, mas nunca desistiu e seguiu em frente.

Há poucos meses eu pensei em criar um blog para publicar obras de Júlio Verne. Imaginava que, mais uma vez, o blog não seria acessado por ninguém. Mas, para minha surpresa, foi. Quem acessou a BJV em seus primeiros dias de vida vai se lembrar que nem mesmo eu sabia o que fazer. Foi aí que, em uma postagem, pedi a ajuda de alguém. Velton Clarindo se prontificou e isso animou-me ainda mais. O trabalho se intensificou.

Algumas semanas depois começavam as postagens de "Viagem ao centro da Terra". Durante esse período, o blog JVernePt divulgou o nosso trabalho e o número de leitores associados cresceu. Pode parecer que os atualmente nove são poucos, mas esse número superou minhas expectativas.

Só o que me resta é agradecer a todos os que me auxiliaram nesse início de jornada pelo mundo verniano. Meus sinceros agradecimentos a Velton Clarindo (Mergulho na Literatura Europeia) e Frederico J. (JVernePt). Também o site http://jv.gilead.org.il foi muito importante para que todo esse trabalho fosse possível, disponibilizando todas as obras de Verne em domínio público. E, principalmente, muito obrigado a todos os leitores do blog, sem vocês a não Biblioteca Júlio Verne não existiria.

Para o próximo ano esperamos continuar com muitas mais publicações, desde os grandes clássicos de Júlio Verne até outras obras pouco conhecidas por alguns. A todos vocês eu desejo um ótimo ano novo repleto de leituras.

Parte 5

A obscuridade envolvia a sala mas Francis Benett, entregado a um sonho semi-extático, nem sequer percebia. Mas, repentinamente, uma porta se abriu.

– Quem é? – disse, girando um comutador.

Imediatamente, por uma corrente elétrica produzida no éter, o ar se iluminou novamente.

– Ah! É você, doutor? – disse Francis Benett.

– Sou eu – respondeu o doutor Sam, que vinha fazer sua visita diária... da plano anual. – Como está?

– Bem.

– Tanto melhor... vejamos sua língua.

E observou-a com o microscópio.

– Bem... e seu pulso?

Mediu com um sismógrafo, muito parecido com os que registram as vibrações do solo.

– Excelente! E o apetite?

– Ah! O estômago...

– É, o estômago! Não anda muito bem! Envelheceu! Mas a cirurgia progrediu muito! Será necessário implantar-lhe um novo! Você sabe, temos estômagos de reserva, com garantia de dois anos...

– Veremos – respondeu Francis Benett. – Enquanto esperamos, doutor, acompanhe-me a jantar.

Durante o jantar, a comunicação fonotelefótica foi estabelecida com Paris. Desta vez, Edith Benett estava sentada à mesa e o jantar, intercalado com os gracejos do doutor Sam, foi fascinante. Logo assim que terminaram:

– Quando pensa em voltar a Universal City, minha querida Edith? – perguntou Francis Benett.

– Vou partir neste instante.

– Pelo tubo ou pelo aerotrem?

– Pelo tubo.

– Então estará aqui...?

– Às onze e cinquenta e nove da noite.

– Hora de Paris?

– Não, não! Hora de Universal City.

– Até logo, então, e, sobretudo, não perca o tubo.

Estes tubos submarinos, pelos quais se vinha da Europa em 295 minutos, eram preferíveis aos aerotrens, que só atingiam 1000 quilômetros por hora.

O doutor se retirou, depois de haver prometido regressar para assistir à ressurreição de seu colega Nathaniel Faithburn, e Francis Benett, querendo fechar as contas do dia, entrou em seu escritório. Era uma enorme operação, quando se trata de uma empresa cujos gastos diários alcançam os 800 mil dólares. Felizmente, os progressos da mecânica moderna facilitam perceptivelmente esse tipo de trabalho. Com ajuda do teclado-calculador elétrico, Francis Benett acabou sua tarefa em vinte e cinco minutos.

Já era hora. Apenas havia apertado a última tecla no aparelho totalizador, sua presença foi requisitada na sala de experimentos. Imediatamente dirigiu-se a ela e foi recebido por um numeroso cortejo de sábios, aos quais havia se unido o doutor Sam.

Ali está o corpo de Nathaniel Faithburn, em seu caixão, colocado sobre cavaletes no meio da sala.

Ativa-se o telefoto e o mundo inteiro pode ver as diversas fases da operação.

Abre-se o féretro... Todos olham para Nathaniel Faithburn. Parece uma múmia, amarelo, rígido, seco. Parece-se com a madeira. Submetem-no ao calor... À eletricidade... Nenhum resultado... Hipnotizam-no... Chamam-no... Nada pode vencer esse estado ultracataléptico.

– E então, doutor Sam? – pergunta Francis Benett.

O doutor Sam se inclina sobre o corpo, examina-o com a maior atenção... Introduz-lhe através de uma injeção hipodérmica algumas gotas do famoso elixir Brown-Séquard, que ainda está na moda... A múmia está mais mumificada do que nunca.

– Bem – responde o doutor Sam –, creio que a hibernação foi prolongada demais...

– E então?

– Então, Nathaniel Faithburn está morto.

– Morto?

– Tão morto quanto se pode estar!

– Pode dizer desde quando?

– “Desde quando”? – respondeu o doutor Sam. – Desde o momento em que teve a nefasta ideia de ser congelado por amor à ciência....

– Convenhamos – exclamou Francis Benett –, eis aqui um método que necessita ser aperfeiçoado!

– Aperfeiçoado é a palavra – respondeu o doutor Sam, enquanto a comissão científica de hibernação levava o seu cortejo fúnebre.

Francis Benett, seguido pelo doutor Sam, retornou a sua casa e, como parecia muito cansado depois de um dia tão atarefado, o médico aconselhou-lhe tomar um banho antes de se deitar.

– Tem razão, doutor... Assim me restabelecerei...

– Completamente, senhor Benett, e se deseja, vou pedir ao sair...

– Não é necessário, doutor. Há sempre um banho preparado na mansão e nem sequer tenho que preocupar-me em ir tomá-lo fora de casa. Veja, com apenas esse botão, a banheira por-se-á em movimento e você a verá apresentar-se com a água à temperatura de trinta e sete graus.

Francis Benett acabava de pressionar o botão. Um ruído surdo nasceu, inchou e cresceu... Logo, abriu-se uma das portas e a banheira apareceu, deslizando eletricamente sobre seus trilhos.

Céus! Enquanto o doutor Sam cobria o rosto, gritinhos de medo e espanto escapam da banheira...

Havendo chegado há meia hora à mansão pelo tubo transoceânico, a Sra. Benett estava dentro...


No dia seguinte, 26 de julho de 2889, o diretor do Earth Herald recomeçava sua ronda de vinte quilômetros através de suas oficinas e, à noite, quando operou seu totalizador, estimou os lucros daquele dia em duzentos e cinquenta mil dólares: cinquenta mil a mais do que na véspera.

Que boa ocupação a de jornalista no final do século vinte e nove!

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Traduzido e adaptado por Eduardo Weiland

Parte 4

Deram as doze horas nesse momento. O diretor do Earth Herald terminou a audiência com um gesto, abandonou a sala, sentou-se em uma cadeira de rodas e chegou em poucos minutos à sala de jantar, localizada a um quilômetro de distância, na extremidade da sua mansão.

A mesa está servida. Francis Benett ocupa seu lugar. Ao alcance de sua mão está disposta uma série de torneiras e, diante de si, o vidro de um fonotelefoto, no qual aparece a sala de jantar de sua mansão em Paris. Apesar da diferença horária, o Sr. e a Sra. Benett combinam de fazer suas refeições ao mesmo tempo. Nada mais encantador que almoçar assim, frente a frente, a seis milhões de quilômetros de distância, vendo-se e conversando por meio de aparelhos fonotelefóticos.

Mas nesse momento a sala em Paris está vazia.

– Edith está atrasada – disse para si mesmo Francis Benett. – Ah, a pontualidade das mulheres! Tudo melhora, menos isso...

E fazendo essa justíssima reflexão, abre uma das torneiras.

Como todas as pessoas abastadas da nossa época, Francis Benett, renunciando à cozinha doméstica, é um dos assinantes da grande Sociedade de Alimentação a Domicílio. Esta sociedade distribui, através de tubos, delícias de todos os tipos. Esse sistema é caro, sem dúvida, mas a comida é muito boa e tem a vantagem de eliminar a enlouquecedora raça de cozinheiros de ambos os sexos.

Assim, Francis Benett almoçou sozinho, não sem lamentar, e estava terminando seu café quando a Sra. Benett, que voltava a sua residência, apareceu no vidro do telefoto.

– E de onde vem, minha querida Edith? – perguntou Francis Benett..

– Oh! – respondeu a Sra. Benett. – Já terminou? Cheguei tarde...? Como assim de onde venho...? Do meu chapeleiro! Este ano ele há uns chapéus fascinantes! E mais, já não são chapéus quaisquer... são domos, são cúpulas! Estou um pouco atrasada...

– Um pouco, querida; pode ver que já terminei meu almoço...

– Bem, vá, meu querido, vá ao seu trabalho – respondeu a Sra. Benett. – Ainda tenho que fazer uma visita a meu modista-modelador.

Esse modista era nada menos que o célebre Wormspire, aquele que corretamente declarou que “a mulher é uma questão de formas”.

Francis Benett beijou a bochecha da Sra. Benett no vidro do fonotelefoto e dirigiu-se à janela, onde o esperava o seu aerocarro.

– Aonde vai, senhor? – perguntou o piloto.

– Vejamos; tenho tempo. – respondeu Francis Benett. – Leve-me às minhas fábricas de acumuladores do Niágara.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

O aerocarro, máquina admirável, baseada no princípio do mais pesado que o ar, lançou-se através do espaço com uma velocidade de seiscentos quilômetros por hora. Embaixo dele, desfilavam as cidades e calçadas móveis que transportavam os pedestres pelas ruas, os campos cobertos pela enorme rede de fios elétricos.

Em meia hora, Francis Benett havia chegado a sua fábrica do Niágara, na qual, depois de haver utilizado a força das cataratas para produzir energia, vende-a ou aluga-a aos seus consumidores. Logo, finalizada sua visita, voltou por Filadélfia, Boston e Nova Iorque até Universal City, onde seu aerocarro deixou-o às cinco da tarde.

Havia uma multidão na sala de espera do Earth Herald. Aguardavam o regresso de Francis Benett para a audiência diária que concedia aos solicitantes. Eram inventores que mendigavam fundos, empresários que propunham negócios, todos excelentes quando ouvidos com atenção. Entre as diferentes propostas, devia fazer uma seleção, recusando as más, examinando as duvidosas e aceitando as boas.

Francis Benett despachou rapidamente os que não traziam mais que ideias inúteis ou impraticáveis. Um deles não queria reviver a pintura, uma arte tão fora de moda que um Angelus de Millet acabava de ser vendido por quinze francos, devido ao progresso da fotografia colorida, inventada no final do século XIX pelo japonês Aruziswa-Riochi-Nichome-Sanjukamboz-Kio-Baski-Kû, nome que se tornou popular com tanta facilidade? Não havia outro encontrado o importante bacilo, que devia tornar o homem imortal sob a forma de um caldo de bactérias? Não acabava este, um químico prático, de descobrir um novo corpo simples, o nihilho, cujo quilograma custava três milhões de dólares? Não afirmava aquele, um médico corajoso, que se as pessoas ainda morrem, ao menos morrem curadas? E este outro, ainda mais ousado, não pretendia possuir um remédio específico contra o resfriado?

Todos esses sonhadores foram despedidos imediatamente.

Alguns outros foram melhor recebidos; em primeiro lugar um jovem, cuja ampla testa anunciava uma profunda inteligência.

– Senhor – disse –, se antigamente calculava-se em setenta e cinco os corpos simples, este número foi reduzido atualmente a três, como o senhor sabe.

– Perfeitamente – respondeu Francis Benett.

– Pois bem, senhor, estou a ponto de reduzir estes três a apenas um. Se não me faltar dinheiro, em algumas semanas terei conseguido.

– E então?

– Então, senhor, certamente terei determinado o absoluto.

– E a consequência desta descoberta?

– Será simples a criação de qualquer material: pedra, madeira, metal, fibra...

– Então você poderia fabricar uma criatura humana...?

– Totalmente... só faltaria a alma...

– Só! – respondeu ironicamente Francis Benett, que, no entanto, incorporou o jovem químico à redação científica do jornal...

Um segundo inventor, baseando-se em velhas experiências datadas do século XIX e desde então repetidas muitas vezes, tinha a ideia de deslocar toda uma cidade em bloco. Tratava-se especificamente da cidade de Staaf, localizada a quinze milhas do mar, que seria transformada em estação balneária, após ser levada sobre trilhos até o litoral. Isso resultaria em enormes benefícios para os terrenos edificados e por edificar.

Francis Benett, seduzido por este projeto, consistiu em financiar metade do negócio.

– Sabe, senhor – disse-lhe um terceiro candidato –, que, graças aos nossos acumuladores e transformadores solares e terrestres, pudemos uniformizar as estações. Proponho fazer algo melhor ainda. Transformemos em calor uma parte da energia de que dispomos e enviemos esse calor ao polos para fundir os gelos...

– Deixe-me seus planos – respondeu Francis Benett – e retorne em uma semana.

Por último, um quarto sábio levava a notícia de que uma das questões que apaixonavam ao mundo inteiro seria resolvida nessa mesma noite.

Sabe-se que, um século atrás, uma temerária experiência havia atraído a atenção pública sobre o doutor Nathaniel Faithburn. Defensor da hibernação humana, isso é, da possibilidade de suspender as funções vitais e posteriormente fazê-las renascer após certo tempo, havia se decidido a experimentar em si mesmo esse método. Depois de haver indicado em um testamento holográfico as operações adequadas para trazê-lo de volta a vida no mesmo dia após cem anos, foi submetido a uma temperatura de 172 graus negativos; reduzido então ao estado de múmia, o doutor Faithburn foi encerrado em uma cripta pelo tempo estabelecido.

Bem, era precisamente nesse dia, 25 de julho de 2889, que o prazo expirava. Vieram propor a Francis Benett que a ressurreição esperada com tanta impaciência fosse celebrada em uma das salas do Earth Herald. Desse modo o público poderia estar ciente da situação a cada segundo.

A proposta foi aceita e, como a operação não deveria ser realizada antes das nove da noite, Francis Benett se estendeu em um divã da sala de audição. Logo, girando um botão, pôs-se em comunicação com o Concerto Central.

Depois de uma jornada tão ocupada, que delícia encontrou nas obras dos melhores músicos da época, baseadas em uma série de sábias fórmulas harmônico-algébricas!
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Parte 3

Francis Benett tinha motivos para estar satisfeito. Um dos astrônomos do Earth Herald acabava de determinar os movimentos do novo planeta Gandini. É a um bilhão, seiscentos milhões, trezentos e quarenta e oito mil, duzentos e oitenta e quatro quilômetros e meio que esse planeta descreve sua órbita ao redor do Sol e para realizá-la necessita duzentos e setenta e dois anos, cento e noventa e quatro dias, doze horas, quarenta e três minutos, nove segundos e oito décimos.

Francis Benett estava encantado com semelhante precisão.

– Bem! – exclamou –, apresse-se em informar ao serviço de reportagens. Você sabe com que paixão o público acompanha estas questões astronômicas. Quero que a notícia apareça na edição de hoje.

Antes de abandonar a sala de repórteres, Francis Benett aproximou-se do grupo especial de entrevistadores e, dirigindo-se ao que estava encarregado das personalidades famosas, perguntou:

– Já entrevistou o presidente Wilcox?

– Sim, senhor Benett, e publiquei na coluna de informações que sem dúvida alguma sofre de uma dilatação do estômago e que deve submeter-se conscientemente a uma lavagem tubular.

– Perfeito. E esse assunto do assassino Chapmann? Entrevistou os jurados que devem presidir a audiência?

– Sim, e estão todos de acordo que é culpado, de modo que o caso nem sequer será visto por eles. O acusado será executado antes de ser condenado...

– Executado... eletricamente?

– Eletricamente, senhor Benett, e sem dor... é o que se espera, pois esse detalhe ainda não foi esclarecido.

A sala ao lado, vasta galeria de meio quilômetro de comprimento, estava designada à publicidade e facilmente se imagina o que deve ser a publicidade de um jornal como o Earth Herald. Produz, em média, três milhões de dólares por dia. Graças ao engenhoso sistema, uma parte desta publicidade é difundida de forma totalmente inédita, devido a uma patente comprada pelo preço de três dólares a um pobre diabo que acabou morto de fome. Consiste em imensos cartazes, refletidos nas nuvens, e cuja dimensão é tal que podem ser vistos em toda a região.

Nessa galeria, mil projetores estão constantemente ocupados em enviar anúncios incomensuráveis às nuvens, que os reproduziam em cores.



Mas, naquele dia, quando Francis Benett entrou na sala de publicidade, viu que os dois mecânicos estavam de braços cruzados junto aos projetores inativos. Questiona-os... como resposta, apontam-lhe o céu de um azul puro.


– Sim, bom tempo – murmura – e a publicidade aérea não é possível! O que fazer? Se fosse apenas chuva poderíamos produzi-la! Mas não precisamos de chuva e sim de nuvens!

– Sim... belas nuvens brancas – respondeu o mecânico chefe.

– Bem, senhor Samuel Mark, você irá à redação cientifica, serviço meteorológico. Dirá a eles, de minha parte, que trabalhem no assunto das nuvens artificiais. Realmente não podemos continuar assim, à mercê do tempo.

Após haver acabado a inspeção das diversas divisões do jornal, Francis Benett passou à sala de recepção, onde o esperavam embaixadores e ministros plenipotenciários. Estes cavalheiros vinham buscar conselhos do todo-poderoso diretor. No momento em que Francis Benett entrava na sala estavam discutindo com certa animação.

– Que Vossa Excelência me perdoe – dizia o embaixador da França ao embaixador da Rússia –, mas para mim não há nada a alterar na mapa da Europa. O Norte para os eslavos, seja! Mas o Sul para os latinos! Nossa fronteira comum do Reno parece-me excelente. Além disso, veja bem, meu governo resistirá a qualquer manobra contra nossas prefeituras de Roma, Madrid e Viena.

– Bem dito – exclamou Francis Benett, interferindo no debate. – Por acaso, senhor embaixador da Rússia, não está satisfeito com seu vasto império, que se estende desde as margens do Reno até as fronteiras da China, um império cujo imenso litoral é banhado pelos oceanos Glacial, Atlântico, o Mar Negro, o Bósforo e o oceano Índico. Além disso, por que as ameaças? A guerra é possível com as invenções modernas, essas conchas asfixiantes enviadas a centenas de quilômetros, essas centelhas elétricas, de vinte léguas de comprimento, que podem destruir com um só golpe um exército inteiro, esses projéteis carregados com micróbios da peste, da cólera, da febre amarela e que destruiriam toda uma nação em poucas horas?

– Sabemos disso, senhor Benett – respondeu o embaixador russo. – Mas podemos fazer o que queremos? Impulsionados pelos chineses na nossa fronteira oriental, devemos tentar, a qualquer custo, alguma ação em relação ao Ocidente...

– Isso é tudo, senhor? – disse Francis Benett em tom paternal. – Bem, já que o avanço chinês é um perigo para o mundo, pressionaremos o Filho do Céu. Ele terá que impor a seus súditos um limite de natalidade que não poderá ser ultrapassado, sob pena de morte. Um filho a mais? Um pai a menos! Isto compensará as coisas.

– Senhor cônsul – disse o diretor do Earth Herald, dirigindo-se ao representante inglês –, o que posso fazer pelo senhor?

– Muito, senhor Benett – respondeu este personagem, curvando-se com humildade. – Basta que seu jornal aceite iniciar uma campanha a nosso favor...

– Com que finalidade?

– Simplesmente para protestar contra a anexação da Grã-Bretanha aos Estados Unidos.

– Simplesmente?! – exclamou Francis Benett encolhendo os ombros. – Uma anexação de cento e cinquenta anos! Mas os senhores ingleses não se resignarão jamais a, por uma justa reviravolta no destino, tornar-se colônia americana? É loucura. Como é possível que seu governo acredite que eu iniciaria essa campanha antipatriótica?

– Senhor Benett., a doutrina de Monroe é toda a América para os americanos, você sabe, mas nada mais que a América, e não...

– Mas a Inglaterra é apenas uma das nossas colônias, senhor, uma das melhores, concordo, e não pense que vamos devolvê-la.

– Você se recusa?

– Recuso-me, e se insistir, provocaremos um casus belli apenas com a entrevista de um de nossos repórteres.

– Então é o fim! – murmurou abatido o cônsul. – O Reino Unido, Canadá e Nova Bretanha são dos americanos, as Índias dos russos, Austrália e Nova Zelândia delas mesmas! De tudo o que uma vez já foi da Inglaterra, o que nos resta? Nada!

– Nada não, senhor! – respondeu Francis Benett. – Resta-lhes Gibraltar!
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Parte 2

Francis Benett despertou naquela manhã de muito mau humor. Fazia oito dias que sua esposa estava na França. Encontrava-se, pois, um pouco solitário. Dá para acreditar? Estavam casados há dez anos e era a primeira vez que a senhora Edith Benett, uma modelo profissional, ausentava-se tanto tempo. Normalmente, dois ou três dias bastavam para suas frequentes viagens à Europa, mais precisamente para Paris, onde ia comprar chapéus.

A primeira preocupação de Francis Benett foi, pois, por em funcionamento seu fonotelefoto, cujos cabos davam na mansão que possuía nos Campos Elíseos.

O telefone era complementado pelo telefoto, mais uma conquista de nossa época. Se há tantos anos a palavra é transmitida por correntes elétricas, só muito recentemente pode-se transmitir também a imagem. Valiosa descoberta, a cujo inventor Francis Benett não foi o último a agradecer naquela manha, quando viu sua mulher, reproduzida no vidro telefótico, apesar da grande distância que os separava.

Que linda visão! Um pouco cansada devido ao baile ou ao teatro da véspera, a Sra. Benett permanece ainda deitada na cama. Ainda que lá seja quase meio-dia, ainda dorme, sua cabeça sedutora oculta embaixo dos travesseiros.

De repente se mexe, seus lábios tremulam... por acaso está sonhando? Sim, sonha! Um nome escapa de sua boca: “Francis..., querido Francis...!”

Seu nome, pronunciado com essa voz doce, dá ao humor de Francis Benett um aspecto mais alegre e, não querendo despertar a bela adormecida, levanta rapidamente de seu leito e penetra em seu vestidor mecânico.

Dois minutos depois, sem que houvesse recorrido a ajuda de nenhum empregado, a máquina o deixava, lavado, penteado, calçado, vestido e abotoado de cima a baixo, na porta de suas oficinas. A ronda cotidiana iria começar. Foi na sala de jornalistas que Francis Benett entrou primeiro.

Ampla, esta sala era coroada por uma grande cúpula translúcida. Em um canto, diversos aparelhos telefônicos pelos quais os cem literatos do Earth Herald narram cem capítulos de cem novelas a um público enraivecido.

Enxergando um de seus folhetinistas que descansava por cinco minutos, Francis Benett disse:

– Muito bem, meu caro amigo, muito bem, seu último capítulo. A cena em que a jovem camponesa aborda com seu namorado uns problemas de filosofia transcendente é produto de um agudo poder de observação. Jamais foram melhor descritos os costumes campestres. Continue assim, meu caro Archibald! Ânimo! Dez mil novos assinantes, desde ontem, graças a você!

– Senhor John Last – prosseguiu virando-se para outro de seus colaboradores –, estou menos satisfeito com você. Sua novela não parece verdadeira! Você vai muito rápido ao objetivo! Mas bem, e os métodos documentais? É necessário dissecar! Não é com uma pena que se escreve em nossa época, é com um bisturi. Cada ação da vida real é o resultado dos pensamentos fugidios e sucessivos, que devem ser organizados com esmero para criar um ser vivo. E o que é mais fácil do que utilizar-se do hipnotismo elétrico, que divide o homem e libera sua personalidade. Observe como você vive, meu caro John Last! Faça como seu companheiro a quem parabenizei agora há pouco. Deixe-se hipnotizar... Como? Você já faz isso, foi o que me disse? Não é suficiente, então, não é o suficiente!


Tendo dado essa breve lição, Francis Benett continua a inspeção e entra na sala de reportagens. Seus mil e quinhentos repórteres, então sentados em frente de vários telefones, comunicavam aos assinantes as notícias do mundo inteiro recebidas durante a noite. A organização deste incomparável serviço é frequentemente descrita. Além de seu telefone, cada repórter tem diante de si uma série de comutadores que permitem estabelecer a comunicação com um telefoto particular. Assim os assinantes não só recebem a narração, mas também as imagens dos acontecimentos, obtidas através da fotografia intensiva.


Francis Benett chama um de seus dez repórteres astronômicos, destinados a este serviço, número que aumentará com os novos descobrimentos ocorridos no mundo estelar.

– E então, Cash, o que recebeu?

– Fototelegramas de Mercúrio, de Venus e de Marte, senhor.

– É interessante esse último?

– Sim! Uma revolução no Império Central, em favor dos democratas liberais contra os republicanos conservadores.

– Como aqui, então. E de Júpiter?

– Ainda nada! Não conseguimos entender os sinais dos jupterianos. Talvez os nossos não cheguem lá.

– Isto é responsabilidade sua, senhor Cash! – respondeu Francis Benett, que, aborrecido, dirigiu-se à sala de redação científica.

Debruçados sobre suas calculadoras, trinta sábios se absorviam em equações de nonagésimo quinto grau. Alguns trabalhavam inclusive com fórmulas do infinito algébrico e do espaço de vinte e quatro dimensões como um escolar brinca com as quatro regras da aritmética.

Francis Benett caiu entre eles como uma bomba.

– E então, senhores, o que me dizem? Ainda nenhuma resposta de Júpiter? Será sempre o mesmo! Vamos, Corley, há vinte anos que você estuda esse planeta, me parece...

– O que você quer, senhor? – respondeu o sábio interpelado. – Nossa ótica ainda deixa muito a desejar, inclusive com nossos telescópios de três quilômetros...

– Ouviu isso, Peer? – interrompeu Francis Benett, dirigindo-se ao colega de Corley. – A ótica deixa muito a desejar...! É sua especialidade, meu caro amigo! Ponha mais lentes, diabos! Ponha mais lentes!

Logo voltou a Corley:

– Mas, na falta de Júpiter, pelo menos temos resultados com a Lua?

– Tampouco, senhor Benett!

– Ah! Desta vez não vai culpar a ótica. A Lua está seiscentas vezes mais perto que Marte, com o qual, no entanto, nosso serviço de correspondência está estabelecido com regularidade. Não são os telescópios que faltam...

– Não, o que faltam são habitantes – respondeu Corley com um sábio sorriso enigmático.

– Atreve-se a afirmar que a Lua está desabitada?

– Pelo menos, senhor Benett, na face que nos mostra. Quem sabe se do outro lado...?

– Bem, Corley, há um meio muito simples de descobrir isso...

– E qual é?

– Vire a Lua!

Naquele mesmo dia os sábios da fábrica de Benett começaram a projetar os meios mecânicos que deviam levar à inversão do nosso satélite.
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Parte 1

Os homens deste século XXIX vivem em meio a um espetáculo de magia contínua, sem que percebam isso. Cansados dessas maravilhas, permanecem indiferentes diante do progresso de cada dia. Para ser sincero, apreciam como se deve os refinamentos dessa civilização. Se comparassem-na ao passado, perceberiam o avanço. Quanto mais admiráveis lhes pareceriam as modernas cidades, com ruas de cem metros de largura, com casas de trezentos metros de altura, uma temperatura sempre igual, o céu sulcado por milhares de aerocarros e aero-ônibus. Ao lado dessas cidades, cuja população alcança às vezes dez milhões de habitantes, o que eram aqueles povos, aquelas aldeias de mil anos atrás, Paris, Londres, Berlim, Nova Iorque, vilas mal ventiladas e lamacentas, onde circulavam caixas balançantes, puxadas por cavalos. Sim, cavalos! É incrível! Se lembrassem o funcionamento defeituoso dos navios e das ferrovias, sua lentidão e suas frequentes colisões, que valor lhes atribuiriam os viajantes dos aerotrens e sobretudo dos tubos pneumáticos, estendidos através dos oceanos e por meio dos quais se viaja a uma velocidade de 1.500 quilômetros por hora? Finalmente, não desfrutariam mais do telefone e da telefoto, lembrando os antigos aparelhos de Morse e Hughes, tão pouco eficazes para a rápida transmissão de mensagens?

Que estranho! Estas surpreendentes transformações se fundamentam em princípios perfeitamente conhecidos que nossos antepassados talvez houvessem negligenciado. Em efeito, o calor, o vapor, a eletricidade são tão antigos quanto o homem. No final do século XIX, os cientistas já não afirmavam que a única diferença entre as forças físicas e químicas está em um modo de vibração, próprio de cada uma delas, das partículas etéreas?

Posto que se havia dado esse enorme passo de reconhecer a semelhança de todas as forças, é realmente inconcebível que fosse necessário tanto tempo para chegar a determinar cada modo de vibração que as diferenciam. É extraordinário, sobretudo, que o método para convertê-las diretamente de uma a outra tenha sido descoberto há muito pouco tempo.

No entanto, assim sucederam-se as coisas e foi apenas em 2790, há quase cem anos, que o célebre Oswald Nyer atingiu o objetivo.

Este grande homem foi um verdadeiro benfeitor da humanidade! Sua genial invenção foi a mãe de todas as outras! Assim surgiu um ilustre grupo de inventores que levou a nosso extraordinário James Jackson. É a este último que devemos os novos acumuladores que condensam, uns a força contida nos raios solares, outros a eletricidade armazenada no seio do nosso globo, aqueles, finalmente, a energia que provém de uma fonte qualquer: ventos, cascatas, rios, arroios, etc. Também é dele o transformador que, extraindo a energia dos acumuladores sob forma de calor, de luz, de eletricidade, de potência mecânica, devolve-a ao espaço, depois de haver obtido o trabalho desejado.

Sim! No dia em que esses instrumentos foram idealizados começou o verdadeiro progresso. Suas aplicações são incalculáveis. Ao atenuar os rigores do inverno pela restituição das sobras do calor de verão, têm ajudado eficazmente na agricultura. Ao fornecer a força motriz dos aparelhos de navegação aérea, têm permitido que o comércio desenvolva-se magnificamente. A eles se deve a incessante produção de eletricidade sem pilhas nem dínamos, de luz sem combustível nem incandescência e, por último, de uma inesgotável fonte de energia, que centuplicou a produção industrial.

Pois bem! Podemos encontrar o conjunto dessas maravilhas em uma mansão incomparável, a mansão de Earth Herald, recentemente inaugurada na avenida 16823 da Universal City, atual capital dos Estados Unidos das duas Américas.

Se o fundador do New York Herald, Gordon Benett, voltasse a vida hoje, o que diria ao ver esse palácio de ouro e mármore, que pertence a seu ilustre neto, Francis Benett? Vinte e cinco gerações se sucederam e o New York Herald se manteve na distinta família dos Benett. Há duzentos anos, quando o governo da União se transferiu de Washington a Universal City, o periódico o seguiu – ou o governo seguiu o periódico – e alterou seu nome para Heart Herald.

Que não se pense que tenha declinado com a administração de Francis Benett. Não! Seu novo diretor, ao contrário, difundiu uma energia e uma vitalidade sem paralelos ao inaugurar o jornalismo telefônico. Conhecemos esse sistema, que se tornou prático com a difusão do telefone. Todas as manhas, ao invés de ser impresso, com nos antigos tempos, o Earth Herald é recitado: em uma rápida conversa com um repórter, um político ou um cientista, os assinantes se põem ao corrente do que lhes pode interessar. Quanto aos compradores dos números avulsos, sabe-se que por poucos centavos informam-se do exemplar do dia nas inúmeras cabines fonográficas.

Esta inovação de Francis Benett revitalizou e antigo jornal. Em alguns meses sua clientela chegou a oitenta e cinco milhões de assinantes e a fortuna do diretor aumentou gradualmente até os trinta milhões, valor facilmente superado atualmente. Graças a essa fortuna, Francis Benett pôde edificar sua nova mansão, colossal construção de quatro fachadas, cada uma das quais medindo três quilômetros, e cujo teto sustenta o glorioso pavilhão de setenta e cinco estrelas da Confederação.

Francis Benett, rei dos jornalistas, seria hoje o rei das Américas se os americanos pudessem alguma vez aceitar a figura de um soberano. Duvidam? Os detentores do poder de todas as nações e mesmo os nossos ministros estão aglomerados na sua porta, pedindo conselhos, buscando a sua aprovação, implorando o apoio de seu jornal todo-poderoso. Calculem a quantidade de sábios que incentiva, de artistas que mantém, de inventores que apoia. Que realeza cansativa; trabalha sem descanso e, certamente, um homem de outro tempo não poderia resistir a tal trabalho diário. Felizmente, os homens de hoje são de constituição mais robusta, graças ao progresso da higiene e da ginástica, que elevou a expectativa de vida de trinta e sete a cinquenta e oito anos, e graças também à aparição dos alimentos científicos, ainda que esperemos o futuro descobrimento do ar nutritivo, que permitirá nutrirmo-nos simplesmente... respirando.

E agora, se lhes interessa conhecer tudo o que constitui o dia de um diretor de Earth Herald, façam o favor de segui-lo em suas múltiplas ocupações, hoje mesmo, neste 25 de julho do presente ano de 2889.
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AMANHÃ AQUI NA BJV

Capítulo XLV

Eis a conclusão de uma narrativa na qual as pessoas mais habituadas a não se surpreender com nada acreditarão. Mas armei-me antecipadamente contra a incredulidade humana.

Fomos recebidos pelos pescadores de Stromboli com todas as atenções devidas aos náufragos. Deram-nos roupas e víveres. Após uma espera de quarenta e oito horas, a 31 de agosto, uma pequena embarcação conduziu-nos a Messina, onde nos recuperamos com alguns dias de descanso.

Na sexta-feira, 4 de setembro, embarcávamos no Volturne, um dos navios-correio das empresas de transportes imperiais da França, e, três dias depois, estávamos em Marselha, com uma única preocupação: a da maldita bússola. O fato inexplicável não parava de atormentar-me. A 9 de setembro à noite, chegávamos a Hamburgo.

Renuncio a descrever o estupor de Marta e a alegria de Grauben.

– Agora que você é um herói – disse-me minha querida noiva –, não precisará mais abandonar-me, Áxel!

Olhei para ela. Chorava sorrindo.

Deixo em aberto quanto a volta do professor Lidenbrock provocou sensação em Hamburgo. Graças à indiscrição de Marta, todo mundo sabia de sua viagem para o centro da Terra. Ninguém acreditou, nem quando retornou. No entanto, a presença de Hans e as várias informações procedentes da Islândia modificaram um pouco a opinião pública.

Então meu tio tornou-se um grande homem, e eu, o sobrinho de um grande homem, o que já é alguma coisa. Hamburgo deu uma festa em nossa homenagem. Numa sessão aberta ao público no Johannaeum, o professor relatou sua expedição, só omitindo os fatos relativos à bússola. Naquele mesmo dia, depôs nos arquivos da cidade o documento de Saknussemm e lamentou não terem as circunstâncias permitido que seguisse os rastros do viajante islandês até o centro da Terra. Foi modesto em sua glória, e sua reputação aumentou.

Tanta honra suscita inveja. Suscitou, e como suas teorias, baseadas em dados seguros, contradiziam os sistemas da ciência sobre a questão do fogo central, sustentou, pela pena e pela palavra, notáveis discussões com os cientistas de todos os países.

Quanto a mim, não consigo admitir sua teoria do resfriamento: a despeito do que vi, acredito e sempre acreditarei no calor central; mas confesso que algumas circunstâncias ainda mal definidas podem modificar essa lei sob a ação dos fenômenos naturais. No momento em que essas questões estavam palpitantes, meu tio passou por um verdadeiro desgosto. Apesar de sua insistência, Hans deixara Hamburgo; o homem ao qual devíamos tudo não quis deixar que pagássemos nossa dívida. Estava com saudades da Islândia.

– Farval – disse ele um dia, e com essa simples palavra de adeus partiu para Reykjavik, onde chegou bem. Havíamos nos afeiçoado muito ao nosso corajoso caçador de êider. Jamais será esquecido por aqueles cujas vidas salvou, e com certeza não morrerei sem ir vê-lo pela última vez.

Para concluir, devo acrescentar que essa Viagem ao centro da Terra provocou sensação entre o público. Foi publicada e traduzida para todas as línguas. Os jornais mais autorizados disputaram seus episódios principais, que foram comentados, discutidos, atacados e apoiados com igual convicção pelos crédulos e incrédulos. Coisa rara: ainda em vida, meu tio gozava de toda a glória que conquistara, e até Bamum propôs “exibi-lo” nos Estados Unidos por um preço elevado.

Mas um problema, podemos dizer até um tormento, atrapalhava a glória. Um fato continuava inexplicável, o da bússola; ora, para um sábio, tal fenômeno inexplicável torna-se um suplício para a inteligência. Bem, os Céus concederiam ao meu tio a felicidade completa.

Um dia, enquanto eu arrumava uma coleção de minerais em seu gabinete, vi a famosa bússola e comecei a observá-la. Estava ali, em seu canto, há seis meses, sem desconfiar do escândalo que provocava.

De repente, qual não foi o meu estupor! Gritei. O professor acorreu.

– O que foi? – perguntou.

– Essa bússola!...

– O que é que tem?

– Sua agulha indica o sul e não o norte!

– O que você está dizendo?

– Olhe! Seus polos estão trocados!

– Trocados!

Meu tio olhou, comparou, e fez a casa tremer com um tremendo pulo. Acendeu-se uma luz em nossas mentes.

– Então – exclamou, assim que conseguiu falar –, desde a nossa chegada ao cabo Saknussemm, a agulha dessa maldita bússola apontava para o sul, em vez de apontar para o norte?

– É claro.

– Então nosso erro está explicado. Mas que fenômeno provocou essa inversão de polos?

– Nada mais simples.

– Explique-se, meu filho.

– Durante a tempestade no mar Lidenbrock, aquela bola de ferro que estava imantando o ferro da jangada simplesmente desorientou nossa bússola.

– Então foi uma simples questão de eletricidade? – O professor caiu na gargalhada.

A partir daquele dia, meu tio tornou-se o mais feliz dos sábios, e eu, o mais feliz dos homens, pois, abdicando de sua posição de pupila, minha bela Virlandesa assumiu, na casa da Königstrasse, a dupla função de sobrinha e esposa. É inútil acrescentar que seu tio era o professor Otto Lidenbrock, membro correspondente de todas as sociedades científicas, geográficas e mineralógicas das cinco partes do mundo.

Capítulo XLIV

Quando tornei a abrir os olhos, senti que a mão vigorosa do guia me apertava a cintura. Com a outra mão, ele segurava meu tio. Não estava gravemente ferido, mas alquebrado por um cansaço geral. Vi que estava deitado na vertente de uma montanha, a dois passos de um abismo, no qual poderia cair ao menor movimento. Hans salvara-me da morte, quando eu rolava pelos flancos da cratera.

– Onde estamos? – perguntou meu tio, que me pareceu muito irritado por ter voltado à superfície da terra.

O caçador ergueu os ombros, mostrando que ignorava.

– Na Islândia – eu disse.

– Nej – respondeu Hans.

– Como não? – gritou o professor.

– Hans está enganado – disse, erguendo-me.

Após as inúmeras surpresas da viagem, mais um estupor aguardava-nos. Esperava ver um cone coberto de neves eternas, no meio dos áridos desertos das regiões setentrionais, sob os raios pálidos de um céu polar, além das latitudes mais altas; mas, ao contrário de todas as previsões, meu tio, o islandês e eu estávamos estendidos no flanco de uma montanha calcinada pelos ardores do sol, que nos devorava com seu calor.

Não conseguia acreditar no que via; o fato de sentir meu corpo assado, porém, não permitia qualquer dúvida. Saíramos seminus da cratera, e o astro radioso, ao qual nada pedíamos há dois meses, mostrava-se pródigo em luz e calor, banhando-nos numa esplêndida irradiação.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Assim que meus olhos se habituaram ao brilho ao qual não estavam mais acostumados, empreguei-os para retificar os erros de minha imaginação. Queria, pelo menos, estar no Spitzberg, e não estava com humor para ceder tão facilmente. O professor foi o primeiro a falar e disse:

– De fato, isto não parece nada com a Islândia.

– Será a ilha de Jean-Mayen? – respondi.

– Também não, meu rapaz. Isto não é um vulcão do norte com suas colinas de granito e sua calota de neve.

– Mas...

– Olhe, Áxel, olhe!

Acima de nossas cabeças, a quinhentos pés no máximo, abria-se a cratera de um vulcão pela qual saía, a cada quinze minutos, com uma detonação muito forte, uma alta coluna de chamas, misturada a pedra-pomes, cinzas e lavas. Sentia as convulsões da montanha, que respirava à maneira das baleias e lançava de quando em quando fogo e ar pelos seus enormes respiradouros.

Abaixo, num declive bastante íngreme, os lençóis de matérias eruptivas estendiam-se por uma profundidade de setecentos a oitocentos pés, o que fazia com que a altitude total do vulcão mal alcançasse trezentas toesas. Sua base desaparecia numa verdadeira corbelha de árvores verdes, entre as quais eu distinguia oliveiras, figueiras e vinhas carregadas de uvas vermelhas.

Era preciso convir que não parecia nada com as regiões árticas.

Quando o olhar transpunha aqueles limites verdejantes, chegava rapidamente a perder-se nas águas de um mar admirável ou de um lago, que transformava aquela terra encantada numa ilha com apenas algumas milhas de largura. No levante, via-se um portinho, precedido por algumas casas, no qual navios de formato singular balançavam às ondulações das vagas azuladas. Mais além, saíam da planície líquida grupos de ilhotas tão numerosos que pareciam um vasto formigueiro. Em direção ao poente, as costas afastadas arredondavam-se no horizonte; numas, perfilavam-se as montanhas azuis de conformação harmoniosa, noutras, mais distantes, agitava-se um penacho de fumaça. Ao norte, uma imensa extensão de água resplandecia aos raios de sol, revelando aqui e ali a extremidade de uma mastreação ou a convexidade de uma vela inchada pelo vento.

O imprevisto de tal espetáculo centuplicava suas maravilhosas belezas.

– Onde estamos? Onde estamos? – eu repetia, baixinho.

Hans fechava os olhos com indiferença, e meu tio olhava sem entender.

– Qualquer que seja esta montanha – disse ele finalmente – faz bastante calor; as explosões continuam, e realmente não vale a pena sair de uma erupção para levar um pedaço de rocha na cabeça. Desçamos, para conseguir orientar-nos. Além disso, estou morrendo de fome e de sede.

Decididamente, o professor não tinha um temperamento contemplativo. Quanto a mim, esquecera as necessidades e o cansaço e teria permanecido naquele lugar por muito mais tempo, mas tive de acompanhar meus companheiros.

As encostas do vulcão eram muito íngremes. Escorregávamos por verdadeiros atoleiros de cinzas, evitando os riachos de lava que se alongavam como serpentes de fogo. Enquanto descia, conversava com loquacidade, pois minha cabeça estava cheia demais para não se esvaziar em palavras.

– Estamos na Ásia – exclamei –, nas costas da Índia, nas ilhas Malaias, em plena Oceania! Atravessamos metade do globo para chegar aos antípodas da Europa!

– E a bússola? – respondia meu tio.

– Sim, a bússola – dizia eu um tanto embaraçado. – De acordo com ela, caminhávamos sempre para o norte!

– Então ela mentiu?

– Ora, mentiu!

– A menos que estejamos no polo norte!

– O polo não, mas...

Era inexplicável. Não sabia o que pensar. Entrementes, aproximávamo-nos daquela verdura que dava prazer de olhar. A fome e a sede atormentavam-me. Felizmente, após duas horas de caminhada, apareceu um lindo campo completamente coberto de oliveiras, romãzeiras e vinhedos que pareciam pertencer a todos. Além disso, em nossa penúria, não tínhamos condições de examinar melhor o terreno. Que prazer espremer os frutos saborosos nos lábios e morder com gosto as uvas dos vinhedos vermelhos! Perto, na relva, à sombra deliciosa das árvores, descobri uma fonte de água fresca, onde mergulhamos voluptuosamente pés e mãos.

Enquanto nos abandonávamos às doçuras do repouso, apareceu um menino entre duas ramagens de oliveira.

– Ah! – exclamei. – Um habitante desta região afortunada!

Era uma espécie de pobrezinho, miseravelmente vestido, aspecto doentio, que pareceu muito assustado com nossa aparência. De fato, seminus, barbas por fazer, estávamos horríveis e, a menos que se tratasse de uma região de ladrões, tínhamos tudo para assustar seus habitantes.

No momento em que o garotinho ia fugir, Hans correu atrás dele e trouxe-o, apesar de seus gritos e chutes. Meu tio tentou tranquilizá-lo, dizendo-lhe em bom alemão:

– Qual é o nome dessa montanha, amiguinho?

O menino não respondeu.

Perguntou a mesma coisa em inglês. O menino também não respondeu. Eu estava muito intrigado.

– Será que é mudo? – exclamou o professor, e então, muito orgulhoso de ser poliglota, repetiu a pergunta em francês.

Mesmo silêncio do garoto.

– Tentemos o italiano – retomou meu tio, e disse nessa língua:

– Dove noi siamo?

– Sim, onde estamos? – repeti com impaciência.

Nada de o garoto responder.

– Vamos, fale! – gritou meu tio, que começava a ficar nervoso e sacudia o menino pelas orelhas. – Come si noma questa isola ?

– Stromboli – respondeu o pastorzinho, que escapou das mãos de Hans e correu para a planície dos olivais.

Nem pensávamos mais nele! O Stromboli! Que impacto esse nome inesperado provocava em minha imaginação! Estávamos em pleno Mediterrâneo, no meio do arquipélago eólio, mitológico, na antiga Stronbole, onde Eólio mantinha os ventos e as tempestades acorrentados. E aquelas montanhas azuis, que se arredondavam no levante, eram as montanhas da Calábria! E o vulcão que se erguia no horizonte sul era o Etna, o selvagem Etna.

– Stromboli! Stromboli! – eu repetia.

Meu tio acompanhava-me com gestos e palavras. Parecíamos estar cantando em coro!

Ah, que viagem, que viagem maravilhosa! Tendo entrado por um vulcão, saímos por outro, e esse outro localizava-se a mais de mil e duzentas léguas do Sneffels, daquela região árida da Islândia, banida para o fim do mundo! O acaso de nossa expedição transportara-nos para o centro de uma das regiões mais harmoniosas da terra. Abandonáramos a região das neves eternas para chegar à da verdura infinita e deixáramos as brumas acinzentadas das zonas glaciais para voltar ao céu azul da Sicília!

Após uma refeição deliciosa de frutas e água fresca, voltamos a caminhar para alcançar o porto Stromboli. Revelar como chegáramos à ilha não nos pareceu prudente; o espírito supersticioso dos italianos não deixaria de ver em nós demônios que o seio do inferno vomitara. Devíamos resignar-nos a passar por humildes náufragos. Era menos glorioso, mas mais seguro.

Enquanto caminhávamos, ouvia meu tio murmurar:

– Mas a bússola! A bússola apontava para o norte! Como explicar isso?

– Ora – desdenhei –, não explique, é mais fácil!

– Essa não, seria uma vergonha um professor do Johannaeum não encontrar o motivo de um fenômeno cósmico.

Ao falar isso, meu tio, seminu, bolsa de couro pendurada na cintura e arrumando seus óculos no nariz, voltou a ser o terrível professor de mineralogia.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Uma hora depois de termos deixado o bosque das oliveiras, chegamos ao porto de San Vicenzo, onde Hans reclamou o salário da décima terceira semana de serviço, que lhe foi entregue com apertos de mão calorosos.

Naquele momento, se não compartilhou nossa emoção bem natural, pelo menos deixou-se levar por um movimento de expansão extraordinário. Apertou levemente nossas duas mãos com a ponta de seus dedos e sorriu.

Capítulo XLIII

Sim, enlouquecera! A agulha pulava bruscamente de um polo para outro, percorria todos os pontos do marcador e girava como se estivesse com vertigem. Eu sabia muito bem que, de acordo com as teorias mais aceitas, a crosta mineral do globo nunca está em estado de repouso absoluto; as modificações provocadas pela decomposição das matérias inertes, a agitação proveniente das grandes correntes líquidas, a ação do magnetismo, tendem a abalá-la sem cessar, enquanto os seres disseminados em sua superfície nem suspeitam de sua agitação. Esse fenômeno não teria me assustado demais, nem me evocado qualquer ideia terrível.

Outros fatos, porém, alguns detalhes genéricos, não conseguiram me enganar por muito tempo. As detonações multiplicavam-se com uma intensidade aterrorizante. Só podia compará-las ao estrondo de um grande número de carroças arrastadas com rapidez pela calçada. Um trovão contínuo.

Além disso, a bússola enlouquecida, abalada por fenômenos elétricos, confirmava minha opinião. A crosta mineral ameaçava romper-se, os maciços graníticos unir-se, a fissura preencher-se, o vazio encher-se e nós, pobres átomos, seríamos esmagados por aquele abraço formidável.

– Meu tio, meu tio! – exclamei. – Estamos perdidos!

– Qual é o seu medo desta vez? – respondeu-me com uma calma surpreendente. – Qual é o problema?

– Problema! Observe estas muralhas agitando-se, o maciço deslocando-se, este calor tórrido, a água fervendo, os vapores cada vez mais densos, a agulha enlouquecida, tudo indica um terremoto!

Meu tio abanou a cabeça com suavidade.

– Um terremoto? – disse.

– Claro!

– Acho que você está enganado, meu filho!

– Como, você não conhece os sintomas?

– De um terremoto? Não. Estou esperando algo bem melhor.

– O que o senhor quer dizer?

– Uma erupção, Áxel.

– Uma erupção! – eu disse. – Estamos na cratera de um vulcão em atividade?!

– Acho que sim – disse o professor sorrindo –, e é o melhor que pode nos acontecer!

O melhor! Meu tio ficara louco? O que significavam aquelas palavras? Por que aquela calma e aquele sorriso?

– Como! – exclamei. – Estamos numa erupção! A fatalidade jogou-nos na trilha das lavas incandescentes, das rochas ardentes, das águas ferventes, de todas as matérias eruptivas! Vamos ser repelidos, expulsos, jorrados, vomitados, expectorados pelos ares com pedaços de rocha, chuvas de cinzas e escórias, num turbilhão de chamas, e é o que pode nos acontecer de melhor!

– Sim – respondeu o professor, encarando-me por cima dos óculos –, pois é a única chance que temos de voltar à superfície da terra!

Repasso rapidamente as mil ideias que se cruzaram em meu cérebro. Meu tio tinha razão, toda a razão e jamais me pareceu tão audacioso e convicto quanto naquele momento em que esperava e calculava com calma as chances de uma erupção.

Enquanto isso, continuávamos subindo. A noite passou naquele movimento ascensional; o barulho ao redor aumentava; estava quase sufocado, achava ter chegado a minha hora, e no entanto a imaginação é tão estranha que me dedicava a uma pesquisa realmente infantil. Mas eu suportava meus pensamentos, não conseguia dominá-los!

Era óbvio que estávamos sendo repelidos por um impulso eruptivo; sob a jangada, águas ferventes, e sob essas águas, uma pasta de lava, um agregado de rochas que, no topo da cratera, seriam dispersas em todos os sentidos. Estávamos, portanto, na cratera de um vulcão. Não havia dúvidas a esse respeito.

Mas desta vez, em vez do Sneffels, vulcão extinto, tratava-se de um vulcão em plena atividade. Perguntava-me portanto que montanha seria aquela e em que parte do mundo seríamos expulsos. Nas regiões setentrionais, sem dúvida. Antes de enlouquecer, a bússola nunca apontara outra direção. Desde o cabo Saknussemm, havíamos sido conduzidos diretamente para o norte por centenas de léguas. Será que voltáramos para baixo da Islândia? Seríamos expulsos pela cratera do Hecla ou por um dos sete outros montes ignívomos da ilha? Só me lembrava, naquele paralelo, num raio de quinhentas léguas a oeste, dos vulcões pouco conhecidos da costa noroeste da América. A leste só existia um no grau oitenta de latitude, o Esk, na ilha de Jean-Mayen, nada longe do Spitzberg! Não faltavam crateras, todas espaçosas o suficiente para vomitar todo um exército. Contudo eu tentava adivinhar qual delas nos serviria de saída.

O movimento de ascensão acelerou-se pela manhã. O calor aumentara, em vez de diminuir com a aproximação da superfície do globo, simplesmente porque era bem local e provocado pela influência vulcânica. Nosso meio de locomoção não deixava qualquer dúvida. Uma força enorme, de várias centenas de atmosferas, produzida pelos vapores acumulados no centro da Terra, impulsionava-nos irresistivelmente. Mas a quantos perigos nos expunha!

Logo reflexos fulvos penetraram na galeria vertical que se alargava; eu via, à direita e à esquerda, corredores profundos semelhantes a imensos túneis, de onde saíam vapores espessos; línguas de chamas lambiam as paredes, cintilando.

– Veja, veja, meu tio! – exclamei.

– O que é que tem? São chamas sulfurosas. Nada mais natural numa erupção.

– E se nos envolverem?

– Não nos envolverão.

– E se formos sufocados?

– Não seremos sufocados. A galeria está alargando-se, e se for preciso abandonaremos a jangada para abrigar-nos em alguma fenda.

– E a água? A água está subindo?

– Não há mais água, Áxel, mas uma espécie de pasta de lava que nos ergue com ela até o orifício da cratera.

Com efeito, a coluna líquida desaparecera para ceder lugar a matérias eruptivas bastante densas, embora ferventes. A temperatura tornara-se insuportável, e um termômetro naquela atmosfera marcaria mais de setenta graus! Eu estava inundado de suor. Não fosse a rapidez da ascensão, teríamos sufocado.

O professor esqueceu sua ideia de abandonar a jangada, no que fez muito bem. Aquelas vigas mal unidas ofereciam uma superfície sólida, um ponto de apoio que nos faltaria em qualquer outra parte.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Por volta das oito horas da manhã, aconteceu, pela primeira vez, um novo incidente. O movimento ascensional parou de repente. A jangada permaneceu completamente imóvel.

– O que é isso? – perguntei, abalado por aquela parada súbita, como o teria sido por um choque.

– Uma parada – respondeu meu tio.

– A erupção acalmou-se?

– Espero que não.

Levantei-me. Tentei olhar a meu redor. Talvez a jangada, detida por uma saliência de rocha, opusesse uma resistência momentânea à massa eruptiva. Se fosse esse o caso, deveríamos apressar-nos em libertá-la o quanto antes. Não era nada disso. A coluna de cinzas, escórias e detritos pedregosos parara de subir por conta própria.

– Será que a erupção parou? – exclamei.

– Ah! - murmurou meu tio, cerrando os dentes. – Você está com medo disso; mas fique tranquilo, o momento de calma não se prolongará muito; já dura cinco minutos, e logo voltaremos à nossa ascensão ao orifício da cratera.

Enquanto falava, o professor não parava de consultar seu cronômetro, e, mais uma vez, devia ter razão em seus prognósticos. Logo a jangada voltou a ser abalada por um movimento rápido, que durou mais ou menos dois minutos e tornou a parar.

– Bem – resmungou meu tio observando a hora –, daqui a dez minutos voltará a andar.

– Dez minutos?

– Sim. Trata-se de uma erupção intermitente. O vulcão permite-nos respirar com ele.

Pura verdade. No minuto preciso, fomos jogados de novo com extrema rapidez. Precisávamos agarrar-nos às vigas para não ser lançados para fora da jangada. Mais uma vez, o impulso deteve-se.

Desde então, reflito sobre aquele fenômeno singular sem encontrar qualquer explicação satisfatória. Parece-me, no entanto, evidente que não estávamos na cratera principal do vulcão, mas num conduto acessório, onde um efeito de repercussão se fazia sentir.

Não sei dizer por quantas vezes essa manobra se repetiu. Só sei dizer que toda vez que o movimento voltava éramos lançados com uma força crescente, como se estivéssemos num projétil. Nos instantes de parada, sufocávamos; nos momentos de projeção, o ar ardente cortava-me a respiração. Pensei, por um momento, na volúpia de encontrar-me de repente nas regiões glaciais, num frio de trinta graus abaixo de zero. Minha imaginação excitada passeava pelas planícies de neve das regiões árticas, e eu aspirava ao momento de rolar pelos tapetes gelados do polo! Além disso, alquebrado pelos repetidos abalos, perdi a cabeça. Não fossem os braços de Hans, teria arrebentado mais de uma vez o crânio nas paredes de granito.

Não conservei, portanto, nenhuma lembrança precisa do que aconteceu nas horas seguintes. Tenho o sentimento confuso de contínuas detonações, da agitação do maciço, de um movimento giratório que arrebatou a jangada. A embarcação ondulou pelas correntes de lava em meio a uma chuva de cinzas. Foi envolvida por chamas estrepitosas. Um furacão que parecia ser provocado por um imenso ventilador agitava os fogos subterrâneos. Vi o rosto de Hans pela última vez num reflexo do incêndio, e meu último sentimento foi o terror sinistro dos condenados amarrados à boca de um canhão no momento em que vai ser disparado, e então dispersar seus membros pelos ares.

Capítulo XLII

Suponho que deviam ser dez horas da noite. Meu primeiro sentido que funcionou após a última aventura foi a audição. Quase que imediatamente ouvi – foi um ato de verdadeira audição – o silêncio voltar à galeria e substituir os mugidos que há muitas horas enchiam meus ouvidos. Finalmente as palavras de meu tio chegaram-me como um murmúrio:

– Estamos subindo!

– O que o senhor está querendo dizer? – exclamei.

– Estamos subindo, sim, estamos subindo!

Estiquei o braço e toquei a muralha; minha mão ficou ensanguentada. Subíamos com extrema rapidez.

– A tocha! A tocha! – exclamou o professor.

Hans conseguiu acendê-la com bastante dificuldade, e a chama, mantendo-se de baixo para cima, apesar do movimento ascencional, iluminou bastante todo o cenário.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

– É exatamente o que eu estava pensando – disse meu tio.

– Estamos num poço estreito, que não tem nem quatro toesas de diâmetro. Tendo chegado ao fundo do abismo, a água está subindo para voltar ao seu nível e faz com que subamos com ela.

– Para onde?

– Não sei, e devemos estar preparados para qualquer acontecimento. Subimos a uma velocidade que avalio ser de duas toesas por segundo, ou seja, cento e vinte toesas por minuto e mais de três léguas e meia por hora. A esse ritmo, estamos andando bastante.

– Sim, se nada nos detiver, se houver uma saída nesse poço! Mas se estiver bloqueado, se o ar se comprimir gradualmente devido à pressão da coluna de água, se formos esmagados!

– Áxel – respondeu o professor na maior calma –, a situação é quase desesperadora, mas há algumas chances de salvação e faço questão de examiná-las. Se a cada minuto podemos perecer, a cada momento podemos ser salvos. Estejamos prontos para aproveitar as menores circunstâncias.

– Mas o que podemos fazer?

– Recuperar nossas forças comendo.

Olhei para meu tio com um ar desvairado. Devia finalmente dizer o que não quisera confessar:

– Comer? – repetia.

– Sim, imediatamente.

O professor acrescentou alguns termos em dinamarquês. Hans balançou a cabeça.

– Como! – exclamou meu tio. – Perdemos nossas provisões?

– Sim, só nos resta um pedaço de carne-seca para três.

Meu tio encarava-me sem querer compreender o que eu dizia.

– Então o senhor continua achando que podemos nos salvar?

Não obtive resposta.

Passou-se uma hora. Começava a sentir uma fome violenta. Meus companheiros também sofriam, mas nenhum de nós ousou tocar naquele miserável resto de alimento. Entrementes, continuávamos a subir com extrema rapidez.

Por vezes, o ar nos cortava a respiração, como acontece com os aeronautas cuja ascensão é rápida demais. Mas se eles sentem um frio cada vez maior à medida que se elevam nas camadas atmosféricas, sofríamos um efeito absolutamente contrário. O calor aumentava de forma preocupante e com certeza devia atingir quarenta graus naquele momento.

O que significava aquela mudança? Até então, os fatos haviam dado razão às teorias de Davy e Lidenbrock; até então as condições particulares das rochas refratárias, de eletricidade e de magnetismo haviam modificado as leis gerais da natureza, concedendo-nos uma temperatura moderada, pois, na minha opinião, a teoria do fogo central continuava a ser a única verdadeira e explicável. Estávamos voltando para um ambiente onde esses fenômenos aconteciam com todo o rigor e no qual o calor reduzia as rochas a um estado de fusão total? Era o que eu temia e o disse ao professor:

– Se não naufragarmos ou formos despedaçados, se não morrermos de fome, ainda poderemos ser queimados vivos.

Ele contentou-se em dar de ombros e voltar a suas reflexões.

Mais uma hora se passou sem que qualquer incidente modificasse a situação, a não ser um leve aumento da temperatura. Finalmente, meu tio rompeu o silêncio:

– Bem, temos de tomar alguma atitude.

– Atitude? – repliquei.

– Sim. Temos de recuperar nossas forças. Se tentarmos prolongar nossas vidas por algumas horas poupando esse resto de comida, ficaremos fracos até o fim.

– Sim, até o fim, que não tardará.

– Muito bem. E se aparecer uma chance de salvar-nos, se for necessário agir, onde encontraremos as forças necessárias, se nos deixarmos enfraquecer pela inanição?

– Ah, meu tio, se devorarmos esse pedaço de carne, o que nos restará?

– Nada, Áxel, nada. Mas você se sente mais bem nutrido devorando-a com os olhos? Isso é raciocínio de um homem sem vontade, sem energia!

– Então o senhor está desesperado? – exclamei, irritado.

– Não! – replicou o professor com firmeza.

– O quê! O senhor ainda tem esperanças de salvar-se?

– Claro que sim! Enquanto o coração bater e a carne palpitar, não admito que um ser dotado de vontade ceda lugar ao desespero!

Que palavras! E o homem que as pronunciava em tais circunstâncias tinha com certeza um caráter pouco comum.

– Mas o que fazer? – perguntei.

– Comer até a última migalha o resto da comida para recuperar as forças que perdemos. Mesmo que seja a nossa última refeição! Mas ao menos, em vez de permanecer esgotados, voltaremos a ser homens!

Meu tio pegou o pedaço de carne e os poucos biscoitos que escaparam do naufrágio; dividiu em três porções iguais e distribuiu-as. Dava cerca de uma libra de alimento para cada um. Meu tio comeu com avidez, com uma espécie de arrebatamento febril; eu, sem prazer apesar de minha fome, quase com nojo; Hans, tranquilamente, com moderação, mastigando sem ruído os pedacinhos, saboreando-os com a calma de um homem nada preocupado com os problemas futuros. Depois de muito procurar, encontrara um cantil cheio, até a metade, de genebra; ofereceu-nos, e aquele licor tão benéfico conseguiu reanimar-me um pouco.

– Förtraffkg! – disse Hans, bebendo.

– Excelente! – volveu meu tio.

Voltara a ter alguma esperança. Mas nossa última refeição terminara. Eram cinco horas da manhã.

O homem é feito de tal forma que sua saúde é um efeito puramente negativo. Satisfeita a necessidade de comer, dificilmente consegue imaginar os horrores da fome; precisa senti-los para compreendê-los. Ao final de um longo jejum, alguns bocados de biscoito e carne venceram nossos sofrimentos passados.

Após a refeição, cada qual voltou a suas reflexões. Em que pensava Hans, aquele homem do Extremo Ocidente dominado pela resignação fatalista dos orientais? Quanto a mim, só pensava nas lembranças que me faziam voltar à superfície daquele globo que jamais deveria ter abandonado. A casa da Kõnigstrasse, minha pobre Grauben e a boa Marta passaram como visões diante de meus olhos, e acreditava surpreender os ruídos das cidades da Terra nos grunhidos lúgubres que percorriam o maciço.

Meu tio, sempre em seu posto, tocha na mão, examinava com atenção a natureza dos terrenos. Tentava reconhecer nossa situação pela observação das camadas sobrepostas. Esse cálculo, ou melhor, essa estimativa, só podia ser muito aproximativa. Um cientista, porém, é sempre um cientista quando consegue conservar seu sangue-frio, e, sem dúvida, o professor Lidenbrock possuía essa qualidade num grau pouco comum. Ouvia-o murmurar palavras da ciência geológica; eu era capaz de compreendê-las, e involuntariamente interessava-me por aquele derradeiro estudo.

– Granito eruptivo – dizia. – Ainda estamos na era primária, mas estamos subindo, subindo cada vez mais. Quem sabe o que encontraremos?

Quem sabe? Continuava a ter esperanças. Tocava a parede vertical e, poucos instantes depois, tornava:

– Gnaisses! Micaxistos! Bem, logo chegaremos a terrenos da era de transição e então...

O que o professor queria dizer? Era capaz de medir a espessura da crosta terrestre suspensa sobre nossas cabeças? Tinha um meio qualquer de fazer esse cálculo? Não. Sem o manômetro, qualquer estimativa tornava-se impossível.

A temperatura continuava aumentando, e sentia-me completamente molhado naquela atmosfera ardente. Só conseguia compará-la ao calor dos fornos de uma fundição na hora da moldagem. Gradualmente Hans, meu tio e eu tiráramos nossos paletós e coletes; a menor peça de roupa provocava muito mal-estar e até sofrimento.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

– Estamos subindo em direção a um forno incandescente! – exclamei ao sentir o calor aumentar.

– Não – respondeu meu tio. – É impossível! É impossível!

– No entanto – eu disse, apalpando a parede –, essa muralha está fervendo!

No momento em que pronunciei essas palavras, minha mão aflorara a água, e tive de retirá-la o mais depressa possível.

– A água está fervendo! – exclamei.

Dessa vez, a única resposta do professor foi um gesto de cólera.

Então um terror invencível tomou conta de meu cérebro e não o abandonou mais. Sentia a aproximação de uma catástrofe de tamanhas proporções que nem a imaginação mais audaciosa seria capaz de concebê-la. Uma ideia, a princípio vaga, transformou-se em certeza para mim. Não ousava formulá-la. Algumas observações involuntárias, contudo, confirmavam minha convicção. À luz duvidosa da tocha, observei alguns movimentos desordenados nas camadas graníticas. Era evidente que ocorreria algum fenômeno ligado à eletricidade. Além disso, o calor excessivo, a água fervente!... Quis consultar a bússola. Ela enlouquecera!
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