Capitulo XI – Luta contra o impossível


Durante muito tempo, Barbicane e os companheiros olharam mudos e pensativos aquele mundo que apenas tinham visto de longe, como Moisés a terra de Canaã, e de que se afastavam definitivamente. A posição do projétil em relação à Lua modificara-se. A sua base estava naquele momento voltada para a Terra.

Ao verificar tal alteração, Barbicane não deixou de surpreender-se. Se o projétil devia gravitar à volta do satélite, seguindo uma órbita elíptica, por que razão não lhe apresentava a parte mais pesada, como faz a Lua em face da Terra? Havia algo de obscuro nisto.

Pela simples observação da marcha do projétil, podia verificar-se que ele seguia, ao afastar-se da Lua, uma curva idêntica à que havia quando houve a aproximação. Traçava, portanto, uma elipse muito alongada, que se prolongava provavelmente até o ponto de igual atração, onde se neutralizam as influências da Terra e do seu satélite.

Essa foi a conclusão que Barbicane tirou dos fatos observados, conclusão essa foi partilhada pelos seus dois amigos. E logo choveram as perguntas.

- E chegados a esse ponto morto, que nos acontecerá? - perguntou Michel Ardan.

- Isso é uma incógnita - respondeu Barbicane.

- Mas podemos antecipar algumas hipóteses, suponho...

- Duas - precisou Barbicane - ou a velocidade do projétil é insuficiente, e nesse caso ficará eternamente imóvel nessa linha de dupla atração...

- Prefiro a outra, seja qual for - comentou Michel.

- Ou a velocidade é suficiente – prosseguiu Barbicane - e então retomará a rota elícita, e gravitará eternamente à volta do astro da noite.

- Alternativa pouco consoladora - opinou Michel.

- Passar ao estado de humildes servidores de uma Lua que estamos habituados a considerar como nossa serva. Eis o futuro que nos espera.

Barbicane e Nicoles nada disseram.

- Ora, por que se calaram? - continuou o impaciente Michel.

- Mas se não há nada a dizer... - justificou-se Nicoles.

- E não haverá nada a tentar?

- Nada - respondeu Barbicane - Ou pretendes lutar contra o impossível?

- E por que não? Um francês e dois americanos hão de recuar diante de semelhante palavra?

- Mas que queres fazer?

- Dominar este movimento que nos arrasta!

- Dominá-lo?

- Sim - insistiu Michel, entusiasmando-se.

- Travá-lo, modificá-lo, usá-lo, enfim, de maneira a realizarmos os nossos projetos.

- E como?

- O problema é vosso! Os artilheiros que não são senhores dos seus projéteis não são artilheiros. Se for o projétil que manda no artilheiro, o melhor é que o artilheiro se meta dentro do canhão no lugar do projétil. Belos sábios, sim, senhor. Eis que não sabem o que ei de fazer depois de me terem induzido...

- Induzido - exclamaram Barbicane e Nicoles. - Induzido! Que queres dizer?

- Nada de recriminações! - avisou Michel - Eu não me queixo! O passeio tem sabor doce. O projétil convém-me! Mas, por favor, façamos tudo o que for humanamente possível para cairmos em qualquer lugar, já que não o podemos fazer na Lua!

- Mas nós também não queremos outra coisa, meu caro Michel - replicou Barbicane - Só que não temos meios.

- Não podemos modificar o movimento do projétil?

- Não.

- Nem diminuir-lhe a velocidade?

- Não.

- Nem mesmo aliviando-o, como se alivia um navio com excesso de carga?

- Que queres alijar? - perguntou por sua vez Nicoles - Não temos lastro a bordo. E, de resto, parece-me que, se aliviássemos o projétil, a velocidade aumentaria.

- Diminuiria - insistiu Michel.

- Aumentaria - teimou Nicoles.

- Nem diminuiria nem aumentaria - asseverou Barbicane, pondo fim à disputa entre os dois amigos - porque flutuamos no vácuo, onde o peso específico não conta.

- Sendo assim - exclamou resolutamente Michel Ardan - só há uma coisa a fazer.

- O quê? - quis saber Nicoles.

- Almoçar! - respondeu o imperturbável e audacioso francês que propunha sempre esta solução quando se apresentavam as mais difíceis conjunturas.

De fato, se esta operação não podia ter qualquer influência sobre a direção do projétil, podia ser tentada sem inconveniente, e até com muito êxito do ponto de vista do estômago. Decididamente, aquele Michel tinha boas idéias.

Almoçaram, portanto, às duas horas da manhã, mas a hora pouco importava. Michel serviu a habitual refeição, coroada com uma preciosa garrafa da sua reserva secreta. Se, depois disto, as idéias não lhes brotassem do cérebro, seria de pôr em dúvida a qualidade do Chamberti.

Terminada a refeição, recomeçaram as observações. Em volta do projétil mantinham-se, a uma distância invariável, os objetos que haviam sido alijados. Era evidente que o projétil, no seu movimento de translação à volta da Lua, não atravessara nenhuma atmosfera, porque o peso específico daqueles diferentes objetos lhes teria alterado a marcha relativa.

Do lado do esferóide terrestre nada havia a assinalar. A Terra, que fora “nova” na véspera à meia-noite, tinha apenas um dia. Seria necessário que decorressem mais dois dias para que o seu crescente, desembaraçado dos raios solares, viesse servir de relógio aos selenitas, visto que, mercê do movimento de rotação, cada um dos seus pontos passam de vinte e quatro em vinte e quatro horas pelo mesmo meridiano da Lua.

Do lado da Lua o espetáculo era diferente. O astro brilhava em todo o seu esplendor, no meio de inumeráveis constelações, sem que os seus raios lhes diminuíssem a pureza. No disco, as planícies retomavam já aquele tom escuro que se vê da Terra. O resto do nimbo continuava cintilante, e, no meio de toda aquela cintilação, destacava-se ainda Ticho, como um sol.

Barbicane não tinha maneira de avaliar a velocidade do projétil, mas o raciocínio demonstrava-lhe que essa velocidade devia decrescer uniformemente, de acordo com as leis da mecânica racional.

O admitido foi que o projétil ia descrever uma órbita à volta da Lua, essa órbita tinha de ser necessariamente elíptica; A ciência assim o demonstra. Nenhum móvel que gravite em volta de um corpo atraente escapa a essa lei. Todas as órbitas descritas no espaço são elíptica, tanto as dos satélites em volta dos planetas, quanto as dos planetas em volta do Sol, como ainda a do Sol em volta de algum astro desconhecido. Por que razão o projétil do Clube do Canhão contrariava esta disposição natural?

Ora, nas órbitas elípticas o corpo atraente ocupa sempre um dos focos da elipse. Há, portanto, um momento em que o satélite está mais próximo, e outro em que se encontra mais afastado do astro em volta do qual gravita. Quando a Terra está mais perto do Sol, diz-se que se encontra no periélio, e no afélio no caso contrário. Com a Lua passa-se algo idêntico: dizemos que está no perigeu ou no apogeu consoante e se encontre mais próxima ou mais distante da Terra. Se o projétil se tornasse satélite da Lua e quiséssemos usar expressões análogas, com as quais se enriquecerá a linguagem dos astrônomos, deveríamos dizer que atingiria o “aposselenico” no ponto mais distante e o “perisselênico” no mais próximo.

Nesse último caso, o projétil devia atingir o máximo de velocidade; no primeiro, o mínimo. Ora, era evidente que ele se dirigia para o ponto “aposselénico”, pelo que Barbicane tinha razão em pensar que a velocidade havia de decrescer até esse ponto, para depois voltar a aumentar, pouco a pouco, à medida que se aproximasse de novo da Lua. A velocidade chegaria mesmo a ser absolutamente nula se aquele ponto coincidisse com o de igual atração.

Barbicane estudava as consequências dessas diferentes situações para procurar tirar o melhor partido delas quando foi subitamente interrompido por um grito de Michel Ardan.

- Santo Deus! - exclamava ele. - Temos de confessar que somos mesmo estúpidos!

- Não digo que não - disse Barbicane. - Mas por quê?

- Por que temos um meio bem simples de reduzir a velocidade que nos afasta da Lua, e não a usamos!

- E que meio é esse?

- A força de recuo dos nossos foguetes.

- É verdade! – exclamo Nicoles.

- Não a utilizamos - volveu Barbicane - mas vamos utilizá-la.

- Quando? - inquiriu Michel.

- Quando chegar o momento! Reparem, meus amigos que, na posição em que está o projétil, posição ainda oblíqua em relação ao disco lunar, os foguetes poderiam alterar-lhe a direção e afastá-lo em vez de aproximá-lo da Lua. Ora, eu creio que é a Lua que pretendem atingir. Não é verdade?

- De preferência - respondeu Michel.

- Então esperem. Por qualquer razão inexplicável, o projétil tende a voltar a base para em direção à Terra. É provável que, no ponto de igual atração, o seu chapéu cônico esteja rigorosamente apontado para a Lua. Nesse momento, é também possível que a velocidade seja nula. Esse será o instante de agir; e, com a ajuda dos nossos foguetes, talvez possamos provocar uma queda direta na superfície do disco lunar.

- Bravo! - entusiasmou-se Michel.

- O que não fizemos nem poderíamos ter feito na nossa primeira passagem pelo ponto neutro, porque o projétil estava ainda animado de uma velocidade muito elevada. –

- Bem pensado - disse Nicoles.

- Aguardemos pacientemente - prosseguiu Barbicane - Coloquemos todos os trunfos do nosso lado. Depois de tanto ter desesperado, começo a acreditar que alcançaremos o nosso objetivo!

Este otimismo provocou os sonoros vivas de Michel Ardan. E nenhum daqueles audazes loucos se recordava já das perguntas a que tinham dado uma resposta negativa: “Não, A Lua não é habitada! Não! A Lua nem decididamente é habitável!” E, não obstante, iam fazer tudo para lá chegar!

Faltava resolver um único problema: em que momento preciso atingiria o projétil o ponto de igual atração, momento esse em que os viajantes arriscariam tudo? 

Para calcular, com a diferença de alguns segundos, esse momento, Barbicane não tinha outras opções além de recorrer às suas notas de viagem e extrair delas as diferentes alturas tomadas nos paralelos lunares. Deste modo, o tempo gasto a percorrer a distância que separava o ponto neutro e o pólo sul devia ser igual à distância existente entre o pólo norte e o ponto neutro. As horas que representavam os tempos observados no percurso estavam cuidadosamente anotadas, pelo que o cálculo se tornava fácil.

Barbicane concluiu que o ponto neutro seria atingido à uma hora da madrugada de 8 de dezembro. Eram naquele momento três horas da madrugada de 7 de dezembro. Desta forma, se nada lhe perturbasse a marcha, o projétil atingiria o ponto desejado dentro de vinte e duas horas.

Os foguetes, que tinham sido concebidos para amortecer a queda do projétil na Lua iam então ser utilizados pelos ousados viajantes para obterem um efeito absolutamente contrário. Como quer que fosse, estavam prontos, e nada mais havia a fazer do que esperar pelo momento de lhes lançar fogo.

- Como não há nada que fazer - disse Nicoles - faço uma proposta.

- Que proposta? - perguntou Barbicane - Proponho que durmamos

- E isso lá são horas para dormir! - disse Michel Ardan.

- Há quarenta horas que não fechamos os olhos - lembrou Nicoles - Algumas horas de sono ajuda a restabelecer as forças.

- Nunca! - replicou Michel.

- Bem - rematou Nicoles façam o que entenderem! Eu vou dormir!

E, deitando-se no divã, Nicoles não tardou a roncar como uma bala de quarenta e oito.

- Este Nicoles é um homem de juízo - disse Barbicane em seguida - Vou seguir-lhe o exemplo.

Instantes depois ele já companhava o roncar abaritonado do capitão com o seu baixo contínuo.

- Decididamente - ponderou Michel Ardan, quando se viu sozinho - estes homens práticos saem-se às vezes com idéias oportunas.

E, estendendo as compridas pernas, apoiando a cabeça nos seus grandes braços, Michel Ardan acabou também por adormecer.

Todavia, aquele sono não podia se prolongar sossegadamente. No espírito dos três homens agitavam-se demasiadas preocupações, pelo que, algumas horas depois, cerca das sete horas da manhã, estavam todos de pé.

O projétil continuava a afastar-se da Lua, inclinando cada vez mais a sua parte cônica para o astro. Fenômeno inexplicável até então, mas que servia inteiramente aos planos de Barbicane.

Mais dezessete horas e o momento de agir chegaria.

Aquele dia parecia interminável. Por muito audazes que fossem, os viajantes estavam vivamente impressionados com a aproximação daquele instante em que tudo se decidiria: ou cairiam na Lua, ou ficavam eternamente acorrentados a uma órbita imutável.

Contaram, uma a uma, as horas, que passavam com uma lentidão exasperante. Barbicane e Nicoles embrenharam-se obstinadamente nos seus cálculos. Michel passeou de um lado para o outro, no estreito espaço existente entre as paredes do projétil, lançando ávidos olhares ao impassível satélite.

Por vezes, recordações da Terra atravessavam-lhes rapidamente o espírito. Reviam os amigos do Clube do Canhão, sobretudo o que lhes era mais caro, J. T. Maston. Naquele momento, o digno secretário devia estar no seu posto das montanhas Rochosas. Se acaso avistava o projétil no espelho do seu gigantesco telescópio, que pensaria? É que depois de tê-lo visto desaparecer por detrás do pólo sul da Lua, via-o reaparecer pelo pólo norte!

Era, portanto, o satélite de um satélite! Teria J. T. Maston anunciado ao Mundo aquela inesperada notícia? Seria aquele o desfecho da grande empreitada?...

Entretanto, o dia passou-se sem incidentes. A meia-noite terrestre chegou. O dia 8 de dezembro ia começar. Mais uma hora e o ponto de igual atração seria alcançado. Que velocidade animava então o projétil? Era impossível avaliá-la. Mas nenhum erro iria fazer gorar os cálculos de Barbicane. À uma hora da manhã a velocidade devia ser e seria nula. Por outro lado, outro fenômeno havia de assinalar a passagem do projétil pela linha neutra. Ali, as duas atrações, a terrestre e a lunar, anular-se-iam. Os objetos “deixariam de ter peso”. Esse fato singular, que no percurso da ida tanto surpreendera Barbicane e os companheiros, devia ocorrer de novo no regresso em idênticas condições. Seria nesse exato momento que deviam atuar.

O chapéu cônico estava já sensivelmente voltado para o disco lunar, pelo que o projétil se apresentava na posição ideal para o integral aproveitamento da força de recuo produzida pela impulsão dos foguetes. Os viajantes tinham, portanto, a seu favor todas as probabilidades de êxito. Se a velocidade do projétil fosse completamente anulada no ponto morto, qualquer movimento na direção da Lua, por muito ligeiro que se revelasse, bastaria para provocar a queda na superfície lunar.

- Faltam cinco minutos para uma - revelou Nicoles.

- Está tudo a postos – garantiu Michel Ardan, aproximando uma mecha da chama de gás.

- Espera - disse Barbicane, com o cronômetro na mão. Naquele momento, a gravidade já não produzia qualquer efeito. Os viajantes sentiam-lhe bem a ausência. Estavam muito perto do ponto neutro, se é que não o tinham mesmo atingido...

- Uma hora! - anunciou Barbicane.

Michel Ardan aproximou a mecha inflamada de um rastilho que acionava instantaneamente os foguetes. No interior do projétil não se ouviu nenhuma detonação. Contudo, pelas vigias Barbicane avistou um clarão, que depressa se extinguiu. O projétil experimentou certo abalo que foi sentido no interior.

Os três amigos se olhavam, escutavam sem falar, respirando ofegantes. Era possível ouvir-lhes o bater do coração no meio de tão absoluto silêncio.

- Caímos? - perguntou por fim Michel Ardan.

- Não - respondeu Nicoles - visto que a base do projétil não se voltou para o disco lunar.

Entretanto, Barbicane, que abandonara as vigias, voltou-se para os dois companheiros. Estava horrivelmente pálido, tinha a fronte enrugada e os lábios contraídos.

- Caímos, sim! - disse ele.

- Ah! - exclamou Michel Ardan - Para a Lua?

- Para a Terra! - respondeu Barbicane.

A verdade é que uma tremenda queda começara. A velocidade que o projétil conservava levara-o para além do ponto morto. A explosão dos foguetes não o sustivera. Essa velocidade, que na ida arrastara o projétil para fora da linha neutra, arrastava-o ainda no regresso. A física impunha que, na sua órbita elíptica, o projétil voltasse a passar por todos os pontos por onde já passara.

Era uma queda terrível, de setenta e oito mil léguas de altura, que nenhuma mola poderia amortecer. De acordo com as leis da balística, o projétil devia se chocar com a Terra com uma velocidade igual ao qual foi animado ao sair do columbiad, ou seja, a uma velocidade de “dezesseis mil metros no último segundo!”.

- Estamos perdidos - disse friamente Nicoles.

- Pois bem, se morrermos - redarguiu Barbicane, com uma espécie de entusiasmo religioso - o resultado da nossa viagem será magnificamente alargado! É o seu próprio segredo que Deus nos revelará! Na outra vida, a alma não necessitará, para saber, de máquinas ou de instrumentos, porque se identificará com a sabedoria eterna!

- De fato - comentou Michel Ardan - o Outro Mundo é bem capaz de nos fazer esquecer esse astro ínfimo que se chama Lua.

Barbicane cruzou os braços sobre o peito, com um movimento de sublime resignação e exclamou:

- Que o Céu nos guarde!

Capítulo X - Questões graves


O projétil transpusera a cintura de muralhas de Ticho. Barbicane e seus dois amigos observaram então com escrupulosa atenção aqueles riscos brilhantes que a célebre montanha dispersa tão curiosamente por todos os horizontes.

Qual deveria ser o motivo daquela radiosa auréola? Que fenômeno geológico originaria aquela ardente cabeleira? Esta questão preocupava com razão Barbicane.

Na verdade, sob os seus olhos alongavam-se em todas as direções feixes luminosos de bordos levantados e côncavos no meio, uns de vinte, outros de cinquenta quilômetros de largura. Aqueles brilhantes rastros corriam, em certos lugares, até trezentas léguas de Ticho, e pareciam cobrir, sobretudo a leste, nordeste e norte, metade do hemisfério meridional.

Um dos jatos de luz estendia-se até o círculo de Neandro, situado no quadragésimo meridiano. Outro, encurvando-se, ia sulcar o Mar do Néctar e quebrar-se na cadeia dos Pireneus, depois de ter percorrido quatrocentas léguas. Outros, ainda para as bandas do oeste, cobriam de uma luminosa rede os Mares das Nuvens e dos Humores.

Qual seria a origem daqueles cintilantes raios que apareciam tanto nas planícies quanto nos relevos, qualquer que fosse a altura que atingissem? Partiam todos de um centro comum: a cratera de Ticho. Dela emanavam.

Herschel atribui aquele fulgurante aspecto às primitivas correntes de lava coaguladas pelo frio, opinião que não foi aceita. Outros astrônomos viram nesses inexplicáveis raios uma espécie de fragmentos de rocha, que se amontoam por norma em volta das geleiras, fiadas de blocos erráticos, que tivessem sido projetados na época da formação de Ticho.

- E por que não? - perguntou Nicoles a Barbicane, que citava as diversas opiniões, rejeitando todas.

- Porque a regularidade das linhas luminosas e a violência necessária para levar a tais distâncias as matérias vulcânicas são inexplicáveis.

- Na verdade! - intrometeu-se Michel Ardan - Parece-me fácil explicar a origem desses raios.

- Achas que sim? - interpelou-o Barbicane.

- Acho - prosseguiu Michel - Basta dizer que é uma gigantesca fratura em forma de estrela, idêntica à que produz a colisão de uma bala ou de uma pedra numa vidraça!

- Ah, sim!- retrucou Barbicane, sorrindo - E que mão seria capaz de atirar a pedra e provocar tal choque?

- A mão não é necessária - replicou Michel, que não desistia tão facilmente - Quanto à pedra, admitamos que seja um cometa.

- Claro, os cometas! - exclamou Barbicane - Abusa-se deles! Meu caro Michel, a tua explicação não é de toda má, mas o teu cometa é que está em excesso. O choque que produziu aquela fratura pode ter vindo do interior do astro. Uma contração violenta da crosta lunar, provocada pelo resfriamento bastaria para justificar tal efeito.

- Uma contração, qualquer coisa como uma cólica lunar... - concordou Michel Ardan.

- De resto - acrescentou Barbicane - esta é também a opinião do sábio inglês Nasmyth, e parece-me explicar cabalmente a irradiação dessas montanhas.

- O tal Nasmyth não é nenhum tolo - concedeu Michel Ardan.

Os viajantes, que não podiam cansar de tamanho espetáculo, admiraram por muito tempo ainda os esplendores de Ticho. O projétil, impregnado de eflúvios luminosos, no meio da dupla irradiação do Sol e da Lua, devia assemelhar-se a um globo incandescente. Os três companheiros passaram subitamente de um frio penetrante a um calor intenso. A natureza preparava-os assim para se tornarem selenitas.

Tornarem-se selenitas; Esta idéia trouxe de novo à baila a questão da habitabilidade da Lua. Depois do que tinham visto, poderiam resolvê-la? Poderiam estar a favor ou contra? Michel Ardan levou os dois amigos a emitir a esse respeito uma opinião, perguntando-lhes se admitiam a existência de animais ou de humanos no mundo lunar.

- Creio que podemos responder - disse Barbicane - mas, quanto a mim, a pergunta deve ser formulada de outro modo. Colocá-la-ei em outros termos, se não te importas...

- Fica à vontade - concordou Michel.

- Ora bem - prosseguiu Barbicane - o problema é duplo e exige uma dupla solução. É a Lua habitável? Foi a Lua habitada?

- Muito bem - disse Nicoles - Comecemos por indagar se é habitável.

- Para falar a verdade, nada sei nada a esse respeito - adiantou Michel Ardan.

- E eu respondo que não - afirmou Barbicane - No estado atual, com aquele invólucro atmosférico, decerto muito reduzido, e a maioria dos mares secos, com insuficiência de água e de vegetação, com dias e noites de trezentas e cinquenta e quatro horas, a Lua não me parece habitável, e não se me afigura propícia ao desenvolvimento do reino animal, nem capaz de ocorrer às necessidades da existência, tal como nós a compreendemos.

- De acordo - interveio Nicoles - Mas não será habitada por seres diferentes de nós?

- Ora, aí está uma pergunta cuja resposta é bem mais difícil – admitiu Barbicane - Apesar disso, tentarei dá-la. Antes, porém, perguntarei a Nicoles o seguinte: é ou não o movimento o resultado lógico da vida, qualquer que seja a sua organização?

- É evidente que sim - respondeu Nicoles.

- Pois bem, meu caro companheiro: nesse caso, lhe responderei que observamos os continentes lunares a uma distância de quinhentos metros, e que nada nos pareceu dotado de movimento na superfície da Lua. A presença de qualquer humano seria evidenciada através de apropriações, de construções diversas, ou mesmo de ruínas.

“Ora, que vimos nós? Por todo o lado, e sempre, o trabalho geológico da natureza, nunca o trabalho do homem. Portanto, se existem na Lua representantes do reino animal, eles só podem estar escondidos nas insondáveis cavidades que o olhar não consegue atingir. E isto eu não admito, porque, mesmo assim, teriam deixado indícios da sua passagem por aquelas planícies, que uma camada atmosférica decerto cobre, por pouco elevada que seja. Ora, a verdade é que tais indícios não são visíveis em parte alguma. Sobra, consequentemente, a hipótese de uma espécie de seres vivos à qual o movimento, que é a vida, não se aplique!”

- Em outras palavras: criaturas vivas que não vivem – sintetizou Michel Ardan.

- Precisamente - concordou Barbicane - O que para nós não tem qualquer sentido.

- Podemos então formular a nossa opinião - concluiu Michel.

- Sim - disse Barbicane.

- Pois ai vai - prosseguiu Michel Ardan - a comissão científica reunida no projétil do Clube do Canhão, depois de ter fundamentado a sua argumentação em fatos perfeitamente confirmados, decidiu por unanimidade de votos, acerca da questão da atual habitabilidade da Lua, o seguinte: não, a Lua não é habitável!

Esta decisão foi consignada pelo Presidente Barbicane no seu bloco de notas, onde figura a ata da sessão de 6 de dezembro.

- Agora - sugeriu Nicoles - abordemos a segunda questão, que me parece indissociável da primeira. Assim, perguntarei à digna comissão: se a Lua não é habitável, será que já foi habitada?

- Tem a palavra o cidadão Barbicane - anunciou Michel.

- Meus amigos - começou Barbicane - não precisei de fazer esta viagem para ter uma opinião sobre a passada habitabilidade do nosso satélite. Acrescentarei que as nossas observações fizeram nada mais do que confirmá-la. Creio que a Lua foi habitada por uma espécie humana organizada à semelhança da nossa, que produziu animais anatomicamente análogos aos terrestres, mas acrescento que o tempo dessas espécies humanas ou animais passou, e que estão para sempre extintas!

- Isso significa que a Lua é um mundo mais velho do que a Terra? - perguntou Nicoles.

- Não - declarou com convicção Barbicane - é um mundo que envelheceu mais depressa, e cuja formação e deformação foram mais rápidas. Relativamente, as forças organizadoras da matéria foram muito mais violentas no interior da Lua do que no do Globo terrestre. O atual aspecto daquele disco gretado, atormentado e rugoso, prova isso. A Lua e a Terra não eram, na sua origem, mais do que massas gasosas. Esses gases passaram ao estado líquido sob diversas influências, e, mais tarde, formou-se a massa sólida. Mas, quase com certeza, o nosso esferóide era ainda gasoso ou líquido, quando a Lua, já solidificada pelo arrefecimento, se tornou habitável.

Depois disso Nicoles, que pretendia concluir o que havia começado, pôs de novo a seguinte questão sobre o problema que acabavam de abordar:

- A Lua foi habitada?

A resposta foi unânime e afirmativa.

Entretanto, durante aquela discussão, fértil em teorias um tanto arrojadas - que de certa forma eram apenas o resumo de idéias gerais adquiridas pela ciência neste domínio - o projétil aproximara-se rapidamente do equador lunar, afastando-se simultânea e regularmente do disco.
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