Capítulo XIV - O salvamento

O local onde o projétil se afundara estava devidamente assinalado. Faltavam, porém, os instrumentos para agarrar-lo e trazer à superfície. Era preciso concebê-los e depois fabricá-los. Os engenheiros americanos não podiam sentir-se embaraçados com tão pouco. Estavam certos de içar o projétil, apesar do seu peso. Aliás, o projétil seria aligeirado pela densidade do líquido em que estava mergulhado, desde que as garras o fixassem e pudessem contar com a ajuda do vapor.

Não era, porém, suficiente pescar o projétil. Era preciso agir quanto antes para salvaguarda dos viajantes. A ninguém passava pela cabeça que não estivessem ainda vivos.

- Sim! - repetia incessantemente J. T. Maston, cuja confiança era contagiante - os nossos amigos são homens hábeis, e não podem ter caído como tolos. Estão vivos e bem vivos, mas é preciso que nos apressemos para encontrá-los com vida. Não são os víveres nem água que me preocupam e sim o ar. Não tarda que o ar lhes falte. Vamos! Depressa! Depressa!

A verdade é que andavam todos numa roda-viva. Susquehanna adaptou-se ao seu novo fim. Prepararam-se as suas poderosas máquinas de molde a acionar os cabos destinados a içar o projétil. Este, sendo de alumínio, pesava apenas dezenove mil duzentas e cinquenta libras, peso muito inferior ao do cabo que foi levantado em condições idênticas. A única dificuldade consistia, portanto, em agarrar um projétil cilindro cônico, cujas paredes, lisas, tornavam a operação bastante complicada.

Com este fim, o engenheiro Murchison, que acorrera a São Francisco, construiu enormes arpões dotados de um sistema automático que, se lograssem agarrar o projétil com as suas possantes tenazes, não mais o largariam. Preparou, também, escafandros, de tal forma impermeáveis e resistentes, que permitiam aos mergulhadores reconhecer o fundo do mar. Fez igualmente embarcar na Susquehanna aparelhos de ar comprimido, de uma concepção muito engenhosa. Eram verdadeiras câmaras com muitas vigias, e que podiam descer a grandes profundidades, através da introdução de água em certos compartimentos. Esses aparelhos existiam já em São Francisco, onde serviram para a construção de um dique submarino, o que constituía um feliz acaso, porque não teria havido tempo para construí-los.

Não obstante, apesar da perfeição desses aparelhos o êxito da operação ainda não era certo. Quantas incertezas persistiam ainda, e bem justificadas, uma vez que se tratava de trazer o projétil de uma profundidade de vinte mil pés! E depois, mesmo que o conseguissem, como teriam os viajantes suportado aquele terrível choque, que nem talvez vinte mil pés de água amorteceriam suficientemente?

Importava, em suma, trabalhar; e depressa! J. T. Maston pressionava os seus operários dia e noite. Ele estava disposto quer a envergar o escafandro, quer a experimentar os aparelhos de ar, para ir verificar a situação dos seus corajosos amigos.

Contudo, apesar de toda a diligência empregada na construção dos diferentes engenhos, e não obstante as consideráveis somas postas à disposição do Clube do Canhão pelo Governo da União, passaram ainda cinco dias - cinco séculos - antes que todos os preparativos estivessem terminados.

Durante esse período, a opinião pública subira ao rubro.

Através dos fios e dos cabos elétricos, os telegramas cruzavam o Mundo em todas as direções. O salvamento de Barbicane, Nicoles e Michel Ardan era um assunto de interesse internacional. Todos os povos que haviam contribuído para a subscrição do Clube do Canhão atribuíram um especial significado à salvação dos viajantes.

Finalmente, as amarras, as câmaras-de-ar e os arpões automáticos foram embarcados na Susquehanna. J. T. Maston, o engenheiro Murchison e os delegados do Clube do Canhão ocupavam já os seus camarotes. Restava apenas partir.

Em 21 de dezembro, às oito horas da noite, a corveta levantou ferro, com mar de feição. Corria uma brisa de nordeste e fazia frio. Toda a população de São Francisco estava apinhada no cais, emocionada e silenciosa. Reservava as manifestações de regozijo para o regresso.

Deu-se ao vapor a máxima pressão, e a hélice da Susquehanna levou-a rapidamente para o largo.

É inútil relatar as conversas que houve a bordo entre oficiais, marinheiros e passageiros. Todos comungavam do mesmo pensamento. Todos aqueles corações palpitavam sob a mesma emoção.

Todavia, enquanto homens corriam em seu socorro, que faziam Barbicane e os companheiros? Que lhes teria acontecido? Estariam em condições de tentar alguma audaciosa manobra para conquistar a liberdade? Ninguém podia dizê-lo. A verdade é que todos os meios teriam falhado! Imersa a perto de duas léguas de profundidade, aquela prisão de metal desafiava todos os esforços dos prisioneiros.

A Susquehanna, depois de uma veloz travessia, devia chegar ao local do acidente às oito horas da manhã do dia 23 de dezembro. Porém, foi necessário esperar pelo meio-dia para se obter a posição exata. A bóia, na qual se fixara a linha da sonda, ainda não fora avistada.

Ao meio-dia, o Capitão Blomsberry, ajudado pelos oficiais que controlavam a observação, calculou a sua posição na presença dos delegados do Clube do Canhão. Houve um momento de ansiedade. Verificou-se que a corveta estava a oeste e a escassos minutos do local exato onde o projétil desaparecera nas ondas. Corrigiu-se, portanto, a rota do navio, de maneira a que alcançasse aquele ponto preciso.

Ao meio-dia e quarenta e sete minutos, localizou-se a bóia. Estava em perfeito estado, e, por certo, pouco derivara.

- Até que enfim! - exclamou J. T. Maston.

- Podemos começar? - perguntou o Capitão Blomsberry.

- Sem perder um segundo - respondeu J. T. Maston.

Trataram de tomar todas as precauções para que a corveta se mantivesse em completa imobilidade.

Antes de tentar içar o projétil, o engenheiro Murchison quis primeiro saber que posição ocupava sobre o fundo oceânico. Os aparelhos submarinos, destinados a esta operação, receberam o seu aprovisionamento de ar. O manejo desses engenhos tinha os seus perigos, porque, a vinte mil pés de profundidade, e sob tão consideráveis pressões, expunham-se a rupturas cujas consequências seriam desastrosas.

J. T. Maston, o irmão de Blomsberry e o engenheiro Murchison tomaram lugar na câmara-de-ar, sem se preocuparem com os eventuais perigos. O comandante orientava da ponte a operação, pronto a parar ou a içar as correntes ao menor sinal. A hélice fora desengatada, e toda a força das máquinas estava aplicada ao cabrestante, pelo que seria fácil trazer rapidamente para bordo todos os aparelhos.

A descida começou à uma hora e vinte e cinco minutos da tarde, e a câmara, devido ao peso dos reservatórios, cheios de água, desapareceu sob a superfície do oceano.

A emoção dos oficiais e dos marinheiros partilhava-se agora entre os prisioneiros do projétil e os do aparelho submarino. Quanto a estes, esqueciam-se de si próprios. Colados aos vidros das vigias, observavam atentamente a massa líquida que atravessavam.

A descida foi rápida. Às duas horas e dezessete minutos, J. T. Maston e os companheiros atingiram o fundo do Pacífico. Mas nada viram, a não ser um árido deserto, que já nem era animado pela fauna e flora marinhas. Á luz das lâmpadas, dotadas de possantes refletores, podiam ver as sombrias camadas de água num raio bastante extenso, mas o projétil mantinha-se invisível.

A impaciência dos audazes mergulhadores era indescritível. Como o aparelho estava em comunicação elétrica com a corveta, fizeram o sinal combinado, e a Susquehanna passeou a câmara na distancia de uma milha, suspensa a alguns metros acima do fundo.

Deste modo, exploraram toda a planície submarina, enganados a cada instante por ilusões de ótica que lhes cortavam a respiração. Aqui, um rochedo, além, uma intumescência do fundo, que se lhes afiguravam como sendo o projétil tão procurado. Depois, no momento seguinte, reconheciam o erro e desesperavam-se.

- Mas onde estão eles? Onde estão? - exclamava J. T. Maston.

E o pobre homem chamava em altos gritos por Nicoles, Barbicane e Michel Ardan, como se os seus infelizes amigos pudessem ouvi-lo ou responder-lhe através daquele impenetrável meio!

A pesquisa continuou nessas condições, até o momento em que o ar do aparelho, viciado, obrigou os mergulhadores a subir. Começaram a içá-lo por volta das seis horas da tarde, e só à meia-noite a operação terminou.

- Amanhã continuamos - disse J. T. Maston, quando pisou a coberta da corveta.

- Sim - respondeu o Capitão Blomsberry - Mas em outro local.

- De acordo.

J. T. Maston continuava a acreditar no êxito das buscas, enquanto os companheiros, a quem já ia esmorecendo o entusiasmo das primeiras horas, compreendiam a enorme dificuldade da empresa. O que parecia fácil em São Francisco tornava-se ali, em pleno oceano, quase irrealizável. As probabilidades de êxito diminuíram numa grande proporção. Só o acaso podia ajudá-los a encontrar o projétil.

No dia seguinte, 24 de dezembro, não obstante as fadigas da véspera, retomou-se a operação. A corveta deslocou-se alguns minutos para oeste, e o aparelho, cheio de ar, levou os mesmos exploradores para as profundezas do oceano.

O dia inteiro foi passado em infrutíferas buscas. O leito do mar estava deserto. O dia 25 nada trouxe de novo. O dia 26 também não.

Era desesperador. Todos pensavam naqueles desventurados, encerrados no projétil há vinte e seis dias! Talvez naquele momento sentissem já os primeiros sintomas de asfixia, se é que tinham escapado à formidável queda. o ar esgotava-se, e com ele a coragem, o ânimo.

- O ar é possível - considerava teimosamente J. T. Maston - mas o ânimo nunca.

Em 28, após mais dois dias de buscas, perdera-se toda a esperança. O projétil era um átomo na imensidade do mar. Teriam que renunciar a encontrá-lo.

Entretanto, J. T. Maston não queria ouvir falar em renúncia, em partida. Não queria abandonar o local sem, pelo menos, ter avistado o túmulo dos seus amigos. Mas o comandante Blomsberry não podia ceder a essa obstinação, pelo que, a despeito das reclamações do digno secretário, deu ordem de aparelhar.

Às nove horas da manha do dia 29 de dezembro, a Susquehanna, virando a proa a nordeste, retomou a rota da bala de São Francisco.

Eram dez horas da manhã. A corveta afastava-se em velocidade moderada, como que com pena, do lugar da catástrofe, quando o marinheiro que estava sentado nas barras do joanete, e que observava o mar, gritou de súbito:

- Bóia a sotavento!

Os oficiais olharam na direção indicada. Com os seus óculos viram que o objeto assinalado tinha, de fato, o aspecto dessas bóias que servem para balizar os canais das balas e dos rios. Mas, pormenor singular, tinha no vértice do seu cone, que emergia da água cinco a seis pés, uma bandeira que flutuava ao vento. A bóia resplandecia ao sol, como se as suas paredes fossem feitas de chapas de prata.

O Comandante Blomsberry, J. T. Maston e os delegados do Clube do Canhão subiram à ponte e examinaram aquele objeto errante que vogava sobre as ondas. Olhavam todos com uma febril ansiedade, mas em silêncio. Ninguém ousava dar voz ao pensamento que atravessava o espírito de todos.

A corveta aproximou-se a menos de duzentas e quarenta braças do objeto. Um frêmito perpassou por toda a tripulação. A bandeira da bóia era a americana.

Ouviu-se então um verdadeiro rugido. Era o bravo J. T. Maston que acabava de cair como uma massa. Esquecendo, por um lado, que o seu braço direito fora substituído por um gancho de ferro, e, por outro, que um simples barrete de guta-percha lhe protegia a caixa craniana, acabava de vibrar na própria cabeça uma formidável pancada.

Precipitaram-se para ele. Levantaram-no. Fizeram com que recuperasse os sentidos. E quais foram as suas primeiras palavras?

- Ali! Grandes brutos! Grandíssimos idiotas. Refinadíssimos ignorantes que nós somos.

- O que há?... - Perguntava-se à sua volta.

- Por favor, explique-se...

- O que há? Grandes imbecis! - berrou o terrível secretário - o projétil pesa apenas dezenove mil duzentas e cinquenta libras!

- E então?

- E que só desloca vinte e oito toneladas, ou seja, cinquenta e seis mil libras, e que, consequentemente, flutua!

E como o digno homem sublinhou o verbo flutuar. E era a verdade! Todos, todos aqueles sábios haviam esquecido dessa lei fundamental: a mercê do seu menor peso específico, o projétil, depois de ter sido levado pela queda até às maiores profundidades do oceano, devia naturalmente voltar à superfície! E agora flutuava tranquilamente ao sabor das ondas...

Lançaram-se as embarcações ao mar. J. T. Maston e os seus amigos precipitaram-se nelas. A emoção estava no auge. Os corações palpitavam, enquanto os escaleres avançavam para o projétil. Que aconteceria a eles? Vivos ou mortos? Vivos, vivos, a menos que a morte tivesse levado Barbicane e os dois companheiros depois de terem arvorado a bandeira.

Pairava um profundo silêncio sobre os escaleres. Todos os corações palpitavam. Os olhos não viam. Uma das vigias do projétil estava aberta. Alguns pedaços de vidro, que restavam no caixilho, provavam que a vidraça fora quebrada. A vigia estava então a cinco pés do nível da água.

Fonte:http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Um dos escaleres acostou ao projétil, o de J. T. Maston. Este precipitou-se para a vidraça quebrada...

Naquele momento, ouviu-se uma voz alegre e clara, a voz de Michel Ardan que exclamava em tom de vitória:

- Tudo bem, Barbicane. Tudo bem!

Barbicane, Michel Ardan e Nicoles jogavam dominó.

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