Capítulo VI – Consequências de um desvio

Barbicane já não sentia qualquer inquietação, se não sobre o êxito da viagem, pelo menos a respeito da força de impulsão do projétil, cuja velocidade virtual o levava a ultrapassar a linha neutra. Portanto, nem voltaria à Terra nem se imobilizaria no ponto de anulação das atrações. Das hipóteses aventadas, uma única ainda não se realizara: a chegada do projétil ao alvo pela ação da atração lunar.

Na realidade, era uma queda de oito mil duzentas e noventa e seis léguas sobre um astro onde a gravidade tem apenas a sexta parte do valor da terrestre. Apesar disso, a queda seria formidável, pelo que todas as precauções deviam ser tomadas sem demora.

Duas espécies de precauções deveriam ser levadas em conta: uma destinada a amortecer o choque no momento em que o projétil caísse no solo lunar, outra tendente a retardar-lhe a queda, tornando-a, consequentemente, mais suave.

Pena que Barbicane não dispusesse dos mesmos meios que tão eficazmente haviam atenuado o abalo da partida, isto é, da água para servir de almofada e dos tabiques quebradiços. Estes ainda existiam, mas faltava a água, visto que nada aconselhava a utilizar para esse fim a reserva de que dispunham, reserva preciosa no caso de vir a faltar-lhes o elemento líquido nos primeiros dias de permanência no solo lunar.

A reserva era insuficiente para servir de almofada. A camada de água armazenada no projétil à partida, sobre a qual assentava o disco estanque, possuía um volume de seis metros cúbicos, que pesava cinco mil setecentos e cinquenta quilos. Ora, os recipientes da reserva não comportavam nem a quinta parte daquele volume. Obviamente, havia que renunciar ao emprego desse poderoso meio de amortecer o choque da chegada.

Por um feliz acaso, Barbicane não se contentara em empregar apenas água e munira o disco móvel com fortíssimas molas, destinadas a minorar o choque na base do projétil depois da destruição dos tabiques horizontais. Essas molas também não se haviam perdido, mas necessitavam ser reajustadas, assim como o disco móvel precisava de ser reposto na posição inicial. Tornava-se fácil manipular e levantar todas essas peças, dado que o seu peso era naquele momento diminuto.

E assim se fez. As diferentes partes foram reajustadas sem qualquer dificuldade. Com alguns parafusos e porcas, a questão resolveu-se, já que a respeito de ferramentas estavam os viajantes bem fornecidos. Em breve, o disco totalmente recomposto, assentou sobre os seus suportes de aço, como uma mesa nos seus pés. A recolocarão apresentava, contudo, um inconveniente: a vidraça inferior ficava obstruída, o que impossibilitaria os viajantes de observar a Lua por aquela abertura, quando começassem a cair na perpendicular do globo lunar.

Contudo, assim tinha de ser. Mas ainda seria possível avistar vastas regiões lunares pelas vigias laterais, como se vê a Terra da barquinha de um aeróstato. A montagem do disco exigiu uma hora de trabalho. Passava do meio-dia quando os preparativos foram dados por concluídos. Depois Barbicane procedeu a novas observações sobre a inclinação do projétil; mas, com grande pesar, verificou que ele não se voltara o suficiente para iniciar a queda, antes parecia seguir uma curva paralela ao disco lunar. O astro da noite brilhava esplendidamente no espaço, enquanto do lado oposto o astro do dia o incendiava com os seus raios de fogo.

A situação era inquietante.

- Conseguiremos chegar? - perguntou Nicoles.

- Procedamos como se estivéssemos para chegar - respondeu laconicamente Barbicane.

- Grandes medrosos me saíram! - censurou Michel Ardan - Chegaremos e mais depressa do que desejamos.

Tal resposta fez com que Barbicane retomasse os trabalhos preparatórios e se ocupasse de imediato com a inspeção dos engenhos destinados a amortecer a queda.

Convém aqui lembrar a assembléia que teve lugar em Tampa, na Flórida, durante o qual o Capitão Nicoles se apresentou como inimigo de Barbicane e como adversário de Michel Ardan. Ao Capitão Nicoles, que sustentava que o projétil se partiria como um vidro, Michel respondera que lhe amorteceria a descida por meio de foguetes convenientemente dispostos.

Realmente, possantes engenhos pirotécnicos, montados na base de projétil para funcionar no exterior, podiam produzir um movimento de recuo e, consequentemente, diminuir numa certa proporção a velocidade do projétil. É também verdade que esses foguetes tinham de arder no vácuo, mas o oxigênio não lhes faltaria, porque a própria combinação pirotécnica o forneceria como acontece com os vulcões lunares, cuja erupção nunca deixou de dar-se por falta de atmosfera em torno da Lua.

Barbicane munira-se, portanto, de vários engenhos pirotécnicos, contidos em pequenos tubos de aço que dispunham de rosca, que se podiam atarraxar à base do projétil. Interiormente, os tubos afloravam-lhe o fundo. Exteriormente se destacavam em cerca de meio pé. Eram ao todo vinte. Uma abertura, especialmente contra o efeito e localizada no disco móvel permitia acender a mecha da qual um deles estava provido.

Devido à sua colocação, todo o efeito se produziria para o lado de fora. As misturas que entrariam em fusão foram previamente introduzidas sob pressão nos tubos. Bastava, portanto, retirar os obturadores metálicos engastados na base do projétil e substituílos pelos tubos, que se ajustavam rigorosamente às aberturas deixadas por aqueles.

Essa operação foi concluída às três horas. Tomadas tais precauções, nada mais havia a fazer senão esperar.

Entretanto, o projétil aproximava-se visivelmente da Lua. Era evidente que estava submetido à sua influência numa certa proporção. Mas a sua velocidade própria impulsionava-o também numa direção oblíqua. A resultante destas duas forças era uma linha que muito provavelmente se transformaria numa tangente. Uma coisa, porém, era clara: o projétil não cairia normalmente para a superfície da Lua, porque, sendo assim, a parte inferior, em virtude do seu peso, deveria estar voltada para o astro.

As inquietações de Barbicane redobravam, visto que o projétil resistia às influências da gravitação. O desconhecido dos espaços interestelares abria-se diante dele. Ele, o homem de ciência, julgara ter previsto todas as hipóteses possíveis: regresso à Terra, queda na Lua ou imobilidade sobre a linha neutral. E eis que outra, carregada de todos os terrores do infinito, surgia inopinadamente. Para enfrentá-la sem desânimo, era preciso ser ao mesmo tempo um sábio resoluto como Barbicane, um ente fleumático como Nicoles e um audacioso aventureiro como Michel Ardan.

O assunto dominou daí em diante todas as conversas. Outros homens teriam considerado o problema do ponto de vista prático. A si próprios teriam perguntado para onde os arrastaria o vagão-projétil. Eles, não. Limitaram-se a tentar descobrir a causa que provocara aquele efeito.

- Quer dizer que descarrilamos. Mas porquê?

- Receio - aventou Nicoles - que o columbiad, apesar de todas as precauções tomadas, não tenha sido apontado com a exatidão necessária. Um erro, por muito pequeno que fosse, bastava para nos pôr fora da atração lunar.

- Teria sido então um erro de pontaria? - perguntou Michel.

- Não, não o creio - disse Barbicane - A perpendicularidade do canhão era rigorosa; a direção para o zênite do lugar é incontestável. Ora, como a Lua passava pelo zênite, devíamos atingi-la em cheio. Há outra razão, mas não atino com ela...

- Não chegaremos muito tarde? - perguntou de chofre Nicoles.

- Muito tarde? - ecoou Barbicane.

- Sim - explicou Nicoles - A nota do Observatório de Cambridge diz que o trajeto deve completar-se em noventa e sete horas, treze minutos e vinte segundos. O que quer dizer que, mais cedo, a Lua não estará ainda no ponto indicado, e que, mais tarde, já lá não se encontrará.

- De acordo - replicou Barbicane - Mas nós partimos em 1 de dezembro, às dez horas, quarenta e seis minutos e setenta e cinco segundos da noite, e devemos chegar à meia-noite do dia 5, no momento preciso em que a Lua estiver em plenilúnio. Pois bem, estamos no dia 5 de dezembro e são três e meia da tarde. Deveriam bastar, portanto, oito horas e meia para atingirmos o alvo. Então por que é que não chegamos?

- Não será por excesso de velocidade? - lembrou Nicoles - porque sabemos agora que a velocidade inicial foi maior do que supúnhamos.

- Não! Cem vezes não! - bradou Barbicane – Um excesso de velocidade, se a direção do projétil fosse boa, não nos impediria de atingir a Lua. Não! Houve um desvio! Fomos desviados.

- Por quem? Por quê? - interrogou Nicoles.

- Nada posso dizer - confessou Barbicane.

- Olha, Barbicane - disse então Michel - tens interesse em saber a minha opinião sobre o desvio?

- Fala, meu bom homem.

- Eu não faço a menor questão de descobrir detalhes sobre esse desvio! Desviamo-nos, é um fato. Para onde vamos, tanto faz como tanto fez! Vê-lo-emos na altura própria. Que diabo! Uma vez que estamos sendo arrastados por esse espaço, acabaremos por ir parar em algum centro de atração.

A indiferença de Michel Ardan não podia contentar Barbicane.

Não que este se inquietasse com o futuro! O que o preocupava era o desvio do seu projétil, cuja razão queria conhecer custasse o que custasse.

Enquanto isto, o projétil continuava a deslocar-se lateralmente em relação à Lua, e com ele todo o cortejo de objetos alijados. Tomando pontos de referência na Lua, que estava a menos de duas mil léguas, Barbicane pôde até concluir que a velocidade se ia tornando uniforme. Nova prova de que não haveria queda. A força de impulsão sobrepunha-se ainda à atração lunar, mas a trajetória do projétil aproximava-o decerto do disco lunar, pelo que podia esperar-se que, em uma distância mínima, a ação da gravidade predominasse e provocasse finalmente a queda.

Os três companheiros, por não terem nada de melhor para fazer, prosseguiam com as observações. Continuavam, porém, sem poder determinar a disposição topográfica do satélite. A projeção dos raios solares nivelava todos os relevos.

E enquanto o tempo decorria, Barbicane obstinava-se em encontrar uma solução para o insolúvel problema que se lhe deparava.

A situação mantinha-se estável. O projétil aproximava-se visivelmente da Lua, mas era também visível que não a atingiria. No que se refere de saber até que distância o projétil se aproximaria da sua superfície, pouco ou nada se podia avançar, visto que essa distância seria a resultante das duas forças - a atrativa e a repulsiva - que atuavam sobre o móvel.

- Só peço uma coisa - repetia Michel - passar tão perto da Lua quanto possível para lhe desvendar os segredos!

- Amaldiçoado seja o que tenha desviado o nosso projétil! - desabafou Nicoles.

- Amaldiçoada seja - apoiou Barbicane, como se de repente se fizesse luz no seu espírito - maldito seja o bólide que se cruzou conosco!

- Hem? - fez Michel Ardan.

- Que quer dizer? - perguntou Nicoles, surpreendido.

- Quero dizer - respondeu convictamente Barbicane - que o nosso desvio se deve apenas a esse corpo errante.

- Mas ele nem sequer nos roçou... - objetou Michel.

- Não importa. A sua massa, comparada com a do nosso projétil, era enorme, e bastou essa atração para afetar a nossa direção.

- Tão pouco! - exclamou Nicoles.

- É verdade, Nicoles; mas por pouco que fosse - replicou Barbicane - numa distância de oitenta e quatro mil léguas seria o bastante para nos fazer errar a Lua!

A direção seguida pelo projétil arrastava-o para o hemisfério setentrional da Lua. Os viajantes estavam longe daquele ponto central onde deveriam cair, se a trajetória não tivesse sofrido um irremediável desvio.

Passava meia hora da meia-noite. Barbicane estimou em mil e quatrocentos quilômetros a distância que os separava da Lua - distância um pouco superior ao comprimento do raio lunar, e que devia diminuir à medida que avançassem em direção ao pólo norte. Na ocasião, o projétil encontrava-se, não à altura do equador, mas na direção do décimo paralelo, e a partir dessa latitude, cuidadosamente assinalada no mapa até o pólo, Barbicane e os companheiros puderam observar a Lua em melhores condições.

Realmente, mediante o uso dos binóculos, a distância de mil e quatrocentos quilômetros reduziu-se a quatorze, ou seja, três léguas e meia. O telescópio das Montanhas Rochosas estava ainda em vantagem, mas a atmosfera terrestre afetava-lhe consideravelmente a potência ótica. Eis a razão por que, postado no projétil, Barbicane alcançava com o seu binóculo certos pormenores que não podiam ser observados da terra.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/
- Meus amigos - disse então o presidente com uma voz grave - não sei para onde vamos, não sei se voltaremos a ver o globo terrestre. Apesar disso, procedamos como se um dia estes trabalhos pudessem vir a ser úteis aos nossos semelhantes. Mantenhamos o espírito liberto de toda e qualquer preocupação. Somos astrônomos. Este projétil é um posto espacial do Observatório de Cambridge. Façamos o que temos de fazer: observemos!

Dito isto, o trabalho foi iniciado com extrema precisão, de tal maneira que conseguiram reproduzir fielmente os diversos aspectos da Lua às distâncias variáveis que o projétil foi ocupando em relação ao astro.

Cerca das duas da manhã, Barbicane encontrava-se à altura do vigésimo paralelo lunar, não longe da pequena montanha de mil quinhentos e cinquenta e nove metros que tem o nome de Pítias. A distância do projétil à Lua não excedia os mil e duzentos quilômetros, que os binóculos reduziam para três léguas.

Lá pelas duas e meia da manhã, o projétil encontrava-se em frente do trigésimo paralelo lunar, em uma distância de mil quilômetros, reduzida a dez pelos instrumentos óticos. Continuava a parecer impossível que pudesse atingir qualquer ponto do disco. A velocidade de translação do projétil, relativamente medíocre, era inexplicável para o Presidente Barbicane. Naquela distância da Lua, essa velocidade deveria ser considerável para manter o projétil, apesar da força de atração. Havia nesse fato um fenômeno cuja razão lhe escapava ainda. Não tinha tempo para investigar-lhe as causas. O relevo lunar desfilava sob os olhos dos viajantes, que dele não queriam perder o mínimo pormenor.

Perto das quatro horas da manhã, na altura do quinquagésimo paralelo, a distância do projétil à Lua reduzia-se a seiscentos quilômetros. À esquerda, corria uma linha de montanhas caprichosamente recortada por uma luz intensa. À direita, ao contrário, cavava-se um buraco negro, como um imenso poço, insondável e escuro, furado no solo lunar.

Às seis horas, o pólo lunar fez a sua aparição. O disco não era mais aos olhos dos viajantes do que uma metade violentamente iluminada. A outra desaparecera nas trevas.

Subitamente, o projétil transpôs a linha de demarcação entre a luz intensa e a sombra absoluta, e mergulhou instantaneamente numa noite profunda.

Na altura em que se produzia tão bruscamente aquele fenômeno, o projétil rasava o pólo norte da Lua a menos de cinquenta quilômetros de distância. Tinham-lhe bastado, portanto, alguns segundos para mergulhar nas trevas eternas do espaço. A transição operara-se de forma tão rápida, sem matizes, sem diminuição gradual da luz, sem atenuação das ondulações luminosas, que o astro parecia ter-se apagado sob a influência de um poderoso sopro.

- A Lua fundiu-se, desapareceu! - exclamou Michel Ardan.

Na verdade, não se enxergava qualquer reflexo ou sombra. Do disco, ainda há pouco resplandecente, nada restava. A obscuridade era completa e tornava-se ainda mais profunda devido à cintilação das estrelas. Era o “negro” de que se impregnam as noites lunares, que duram trezentas e cinquenta e quatro horas e meia em cada ponto do disco - longa noite que resulta da igualdade existente entre os movimentos de translação e rotação do satélite, um sobre si próprio, outro à volta da Terra. O projétil, imerso no cone de sombra do disco, estava fora do alcance dos raios solares como qualquer dos pontos da sua parte invisível. 

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