Capítulo II - Comunicação do Presidente Barbicane

No dia 5 de outubro, às oito horas da noite, encontrava-se reunida uma compacta multidão nos salões do Clube do Canhão. Entretanto, o grande salão oferecia aos olhares um curioso espetáculo. Estava maravilhosamente apropriado para o que se destinava. Altas colunas compostas por canhões sobrepostos e apoiados em enormes morteiros sustinham os finos lavores da abóbada. Panóplias de bacamartes, de arcabuzes, de carabinas, de todas as espécies de armas de fogo antigas e modernas que se entrelaçavam pitorescamente nas paredes. A luz do gás emergia de centenas de revólveres agrupados em forma de lustres, enquanto girândolas de pistolas e candelabros feitos de espingardas reunidas em feixes completavam a esplêndida iluminação. Os modelos de canhões, as amostras de bronze, os alvos crivados de tiros, as chapas quebradas pelo choque das balas do Clube do Canhão, coleções completas de soquetes e lanadas, os rosários de bombas, os colares de projéteis, as grinaldas de obuses - em uma palavra, todos os utensílios do artilharia surpreendiam pela sua espantosa e admirável disposição e faziam pensar que o seu verdadeiro fim era mais decorativo que mortífero.
 
No lugar de honra, resguardado por uma esplêndida vitrina, um pedaço de culatra, quebrado e torcido, sob os efeitos da Pólvora, destroço precioso do canhão de J. T. Maston. No fundo da sala, o presidente, assistido por quatro secretários, ocupava uma espaçosa plataforma.

O seu lugar, erguido sobre um reparo esculpido, assemelhava-se, no seu todo, às robustas formas de um morteiro de trinta e duas polegadas; estava assestado sob um ângulo de noventa graus e suspensos em munhões de tal modo que o presidente podia imprimir-lhe, como às cadeiras de balanço, um movimento bastante agradável nas ocasiões de grande calor. Sobre a secretária, grande placa metálica, apoiada em seis obuses, via-se um tinteiro de requintado gosto, admiravelmente cinzelado, e uma campainha de detonação, que soava, nas ocasiões em que era tocada, como um revólver. No entanto, durante as mais veementes discussões, essa campainha de novo gênero mal chegava a cobrir a voz daquela legião de artilheiros entusiasmados.

Impey Barbicane era um homem de quarenta anos, calmo, frio, austero, com um espírito eminentemente sério e concentrado; exato como um cronômetro, de um temperamento a toda prova e de um caráter inquebrantável; pouco cavalheiresco, aventureiro, mas levando o seu espírito prático até para os empreendimentos mais temerários; era por excelência o homem da Nova Inglaterra, o nortista colonizador, o descendente desses Cabeças-redondas tão funestos aos Stuarts, e implacável inimigo dos gentlemen do Sul, esses antigos cowboys da mãe-pátria. Era de estatura mediana, tendo, como rara exceção no Clube do Canhão,todos os seus membros intactos. Em resumo: um ianque feito de uma única peça

Quando soaram as oito horas no relógio da grande sala, Barbicane, como se fosse movido por uma mola, ergueu-se subitamente; fez-se um silêncio geral e o orador, num tom um pouco enfático, tomou a palavra nestes termos:

- Bravos colegas, há muito tempo que uma paz infecunda veio mergulhar os membros do Clube do Canhão numa lamentável inatividade. Após um período de alguns anos, tão cheio de incidentes, foi necessário abandonar os nossos trabalhos e deter-nos na senda do progresso. Não receio proclamar em voz alta que uma guerra que voltasse a colocar as armas nas nossas mãos seria bem-vinda...

- Sim, a guerra! - exclamou o impetuoso J. T. Maston.

- Ouçam! Ouçam! - gritaram de todos os lados.

- Mas a guerra - continuou Barbicane - a guerra é impossível nas circunstâncias atuais e, apesar do que possa esperar o meu honrado colega, passar-se-ão muitos anos antes que os nossos canhões voltem a troar nos campos de batalha. Devemos, portanto, tomar uma decisão e procurar em outro campo de ação alimento para a atividade que nos devora!

A assembléia redobrou a atenção quando sentiu que o seu presidente ia abordar o ponto delicado.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/
- A cerca de alguns meses, meus bravos colegas - continuou Barbicane - que pergunto a mim mesmo se, embora continuando a manter-nos dentro da nossa especialidade, não poderíamos empreender alguma grande experiência digna do século XIX. Procurei, trabalhei, calculei, e dos meus estudos resultou a convicção de que ‘poderíamos ter êxito numa empresa que pareceria impraticável para qualquer outro país’. Este projeto, longamente elaborado, vai ser o objeto da minha comunicação; é digno de vós, digno do passado do Clube do Canhão, e não poderá deixar de fazer sensação no Mundo!

- Muita sensação? - perguntou um artilheiro apaixonado.

- Muita sensação no verdadeiro sentido do termo! - respondeu o presidente.

- Não interrompam! - repetiram muitas vozes.

- Peço-lhes, portanto, caros colegas, para me darem toda a vossa atenção - Um frêmito correu pela assistência. Barbicane, depois de ter num gesto rápido assegurado a posição de seu chapéu na cabeça, continuou o seu discurso com voz calma - Não há um só de vós, caros colegas, que não tenha visto a Lua, ou pelo menos não tenha ouvido falar nela. Não se admirem de eu vir aqui falar do astro da noite. A nós talvez esteja reservado o título de Colombos desse ‘mundo’ desconhecido. Compreendam-me, apóiem-me com todos os vossos poderes, e eu conduzi-los-ei à sua conquista, e os vossos nomes juntar-se-ão ao dos trinta e seis Estados que formam este grande país!

- VIVA A LUA! - exclamou o Clube do Canhão numa só voz, em um estouro de excitação.

- A Lua tem sido muito estudada - prosseguiu Barbicane - a sua massa, a sua densidade, o seu peso, o seu volume, a sua constituição, os seus movimentos, a sua distância, o seu papel no sistema solar está perfeitamente determinado; fizeram-se mapas selenográficos com uma perfeição que iguala, se é que não ultrapassa, a dos mapas terrestres; a fotografia do nosso satélite deu provas de uma incomparável beleza. Resumindo, sabe-se da Lua tudo que as ciências matemáticas, a astronomia, a geologia e a ótica podem ensinar a seu respeito; mas até agora nunca foi estabelecida uma ligação direta com ela.

Esta última frase excitou tal interesse e surpresa que chegou a produzir grande agitação.

- Permitam-me - proceguiu ele - lembrar-lhes como certos espíritos ardentes, embarcados em viagens imaginárias, pretenderam ter penetrado os segredos do nosso satélite. No século XVII, um certo David Fabricius gabou-se de ter visto com os seus próprios olhos os habitantes da Lua. Em 1649, um francês, Jean Baudoin, publicou a Viagem Feita ao Mundo da Lua pelo Aventureiro Espanhol Dominguez Gonzalez. Na mesma época, Cyrano de Bergerac deu à luz da publicidade aquela célebre expedição que tanto êxito teve na França. Mais tarde, outro francês (porque esses indivíduos ocupam-se muito da Lua), chamado Fontenelle, escreveu a 'Pluralidade dos Mundos', uma obra-prima do seu tempo; mas o avanço da ciência esmaga as obras-primas. Por volta de 1835, um folheto traduzido do New York American contou que Sir John Herschell, enviado ao cabo da Boa Esperança, para ali fazer estudos astronômicos, tinha conseguido, por meio de um telescópio aperfeiçoado por uma iluminação interna, trazer a Lua para uma distância de oitenta jardas. Teria então visto distintamente as cavernas em que viviam os hipopótamos, as verdes montanhas orladas de rendas de ouro, carneiros com chifres de marfim, cabritos brancos, habitantes com asas membranosas como as dos morcegos. Esta brochura, obra de um americano chamado Locke, conheceu grande popularidade. Mas em breve se reconheceu tratar-se de uma mistificação científica, e os franceses foram os primeiros a rir-se dela.

- Rir de um americano! - exclamou J. T. Maston, em tom de quem recebe uma ofensa - Mas isso é um caso de guerra!...

- Tranquilize-se, meu digno amigo. Os franceses, antes de rirem, tinham sido perfeitamente iludidos pelo nosso compatriota. Para terminar este rápido relato histórico, acrescentarei que um certo Hans Pfael, de Roterdã, subindo num balão cheio de um gás obtido do azoto, e trinta e sete vezes mais leve do que o hidrogênio, atingiu a Lua após dezenove dias de travessia. Essa viagem, como as tentativas precedentes, era simplesmente imaginária, mas trata-se da obra de um escritor popular na América, um gênio singular e contemplativo. Refiro-me a Edgar Poe.

- VIVA EDGAR POE! - gritou a assembléia, eletrizada pelas palavras do presidente.

- Acabei - continuou Barbicane - com essas tentativas a que chamarei puramente literárias, e perfeitamente insuficientes para estabelecer relações com o astro da noite. Assim, há alguns anos um geômetra alemão propôs enviar uma comissão de sábios para as estepes da Sibéria. Ali, em vastas planícies, deviam fazer desenhar imensas figuras geométricas, por meio de refletores luminosos, entre outras a do quadrado da hipotenusa. “Qualquer ser inteligente”, dizia este geômetra, “deve compreender o destino científico dessa figura. Portanto, os selenitas - prováveis habitantes da Lua, se é que existem - responderão com uma figura semelhante, e, uma ‘vez estabelecida a comunicação, será fácil criar um alfabeto que permitirá trocar mensagens com os habitantes da Lua.” Assim falava o geômetra alemão, mas o seu projeto não foi posto em execução e até agora nenhuma ligação direta foi estabelecida entre a Terra e o seu satélite. Mas está reservado ao gênio prático dos americanos a concretização da relação com o mundo sideral. O meio de conseguir é fácil, certo, infalível, e vai ser o objeto da minha proposta.

Um barulho ensurdecedor, uma tempestade de aclamações acolheu estas palavras.
Quando a agitação se acalmou, Barbicane recomeçou em tom mais grave o seu interrompido discurso:

- Sabeis bem - disse - que progresso a balística tem feito desde alguns anos e a que grau de perfeição teriam chegado as armas de fogo se a guerra tivesse continuado. Também não ignorais que, de modo geral, a força de resistência dos canhões e o poder expansivo da pólvora são ilimitados. Pois bem, partindo deste princípio, perguntei a mim mesmo se, por meio de um instrumento adequado, em condições de resistência determinadas, não seria possível enviar uma bala para a Lua.

A estas palavras, uma exclamação de estupefação saiu de mil peitos ofegantes; depois se fez um momento de silêncio, semelhante a essa calma profunda que precede o ruído do trovão. E, realmente, a tempestade rebentou, mas como uma tempestade de aplausos, de gritos, de clamores, que fez tremer a sala. O presidente queria falar, mas não podia. Só passados dez minutos é que ele conseguiu fazer-se ouvir.

- Deixem-me concluir - continuou com voz fria. - Examinei a questão sob todos os aspectos, abordei resolutamente o problema, e dos meus cálculos, indiscutíveis, resulta que qualquer projétil dotado de uma velocidade inicial de doze mil jardas por segundo, e dirigido para a Lua, chegará necessariamente até lá. Tenho, portanto, a honra de vos propor, meus valentes colegas, tentarem esta ‘pequena experiência!’
É impossível descrever o efeito produzido pelas últimas palavras do honrado presidente: Houve uma desordem, um sussurro de vozes indescritível. As bocas gritavam, as mãos batiam, os pés faziam estremecer o pavimento. Todas as armas daquele museu de artilharia, disparadas ao mesmo tempo, não teriam agitado mais violentamente as ondas sonoras. Isso não é de surpreender; Há artilheiros quase tão ruidosos quanto os seus canhões.

Barbicane permanecia calmo no meio desses clamores entusiastas; talvez quisesse dirigir ainda algumas palavras aos seus colegas, pois os seus gestos reclamavam silêncio, e a sua campainha fulminante detonou tão inútil quanto violentamente. Nem sequer o ouviam. Pouco depois foi arrancado da sua cadeira e levado em triunfo. Passou das mãos dos seus fiéis camaradas para os braços da presente multidão não menos exaltada.

O passeio triunfal do presidente prolongou-se pela noite. Foi uma verdadeira marcha iluminada por archotes. Precisamente, como se tivesse compreendido que se tratava dela, a Lua brilhava estava nesse momento com uma serena magnificência, eclipsando com a sua intensa radiação as luzes terrestres. Os ianques voltavam os olhos para o seu disco cintilante; uns saudavam-na com a mão, outros com nomes mais meigos; enquanto uns a mediam com o olhar e outros a ameaçavam.
Somente por volta das duas horas, a emoção acalmou-se. O Presidente Barbicane conseguiu voltar para a sua casa, moído, cansado. Um hércules não teria resistido a semelhante entusiasmo. A multidão abandonou pouco a pouco as praças e as ruas. 

No dia seguinte, mil e quinhentos jornais apoderaram-se da questão, examinaram-na sob os seus diferentes pontos de vista, físicos, meteorológicos, econômicos ou morais, pela perspectiva da preponderância política ou da civilização. Perguntavam se a Lua seria um mundo morto, se não estaria ainda em via de transformação. Se assemelharia à Terra no tempo em que ainda não tinha atmosfera. Que espetáculo apresentaria a parte invisível do nosso satélite? Se bem que se tratasse ainda apenas de enviar uma bala ao astro da noite, todos viam nela um ponto de partida para uma série de novas experiências; todos esperavam que um dia a América penetrasse os últimos segredos desse disco misterioso e alguns mesmo pareciam temer que a sua conquista alterasse sensivelmente o equilíbrio europeu.

Discutido o projeto, nenhum jornal pôs em dúvida a possibilidade da sua realização; as revistas, os panfletos, os boletins e os magazines publicados pelas sociedades científicas, literárias ou religiosas, faziam ressaltar as suas vantagens. A Sociedade de História Natural de Boston, a Sociedade Americana das Ciências e das Artes de Alabany, a Sociedade Geográfica e Estatística de Nova Iorque, a Sociedade Filosófica Americana de Filadélfia e o Instituto Smithsoniano de Washington, enviaram em cartas as suas felicitações ao Clube do Canhão, com ofertas imediatas de coadjuvação e de dinheiro. 

A verdade, pode-se disser, é que nunca nenhuma proposta reuniu tal número de adesões; hesitações, dúvidas, inquietações não ocorreram a ninguém. Quanto às brincadeiras, às caricaturas, às canções que teriam acolhido na Europa, e especialmente na França, a idéia de enviar um projétil à Lua, teria servido muito mal os seus autores; nem todos os revólveres do mundo seriam capazes de garantir a sua segurança contra a indignação geral. Há coisas de que as pessoas não riem no Novo Mundo. Impey Barbicane tornou-se, a partir desse dia, um dos maiores cidadãos dos Estados Unidos, qualquer coisa como o ‘Washington da Ciência’.

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