Capítulo VII - Colina das Pedras

Resolvidas as dificuldades astronômicas, mecânicas e topográficas, surgiu a questão do dinheiro. Tratava-se de arranjar uma soma enorme para a execução do projeto. Nenhuma instituição particular, nenhum Estado mesmo, poderia dispor dos milhões necessários.

O Presidente Barbicane tomou, portanto, o partido de fazer do caso um assunto de interesse universal e pedira a todos os povos a sua colaboração financeira. Era ao mesmo tempo o direito e o dever de toda a Terra intervir nos assuntos do seu satélite. A subscrição aberta com esse objetivo estendeu-se de Baltimore a todo o Mundo.

A subscrição viria a ter um êxito para além de toda a expectativa, não obstante tratar-se de quantias dadas, não emprestadas. A operação era puramente desinteressada no sentido literal da palavra, e não oferecia possibilidade alguma de lucro. O efeito da comunicação de Barbicane não se detivera nas fronteiras dos Estados Unidos; atravessam o Atlântico e o Pacífico, invadindo simultaneamente a Ásia e a Europa, a África e a Oceania. 

Os observatórios dos Estados Unidos puseram-se imediatamente em ligação com os observatórios de outros países. Alguns como os de Paris, de São Petersburgo, do Cabo, de Berlim, de Altona, de Estocolmo, de Varsóvia, de Hamburgo, de Buda, de Bolonha, de Malta, de Lisboa, de Benares, de Madrasta ou de Pequim - enviaram os seus cumprimentos ao Clube do Canhão; outros mantiveram uma prudente expectativa.

Quanto ao Observatório de Greenwich, apoiado pelos outros vinte e dois estabelecimentos astronômicos da Grã- Bretanha, foi concludente: negou ousadamente a possibilidade de êxito, e adotou as teorias do Capitão Nicoles.

Além disso, enquanto diversas sociedades científicas prometiam enviar delegados a Tampa, o pessoal do Observatório de Greenwich, reunido em sessão, passou bruscamente para a ordem do dia depois de conhecida e rejeitada a proposta de Barbicane.

Era a bela e boa inveja inglesa e nada mais. Resumindo: o efeito foi excelente no mundo científico, e daí passou para as multidões, que, de uma maneira geral, se apaixonaram pela questão. Esse fato tinha grande importância, visto que as massas iam ser chamadas a contribuir com um capital considerável.

No dia 8 de outubro, o Presidente Barbicane já havia lançado um manifesto cheio de entusiasmo, no qual apelava para “todos os homens de boa vontade da Terra”. Esse documento, traduzido em todas as línguas, teve grande êxito. Foram abertas subscrições nas principais cidades dos Estados Unidos para serem centralizadas no Banco de Baltimore, em Baltimore Street, número 9. A subscrição estendeu-se pelos diferentes países dos dois continentes.

Três dias após o manifesto do Presidente Barbicane, eram recebidos quatro milhões de dólares nas diferentes cidades dos Estados Unidos. Com tal quantia o Clube do Canhão podia desde logo começar o seu projeto.

Contudo, alguns dias mais tarde, a América do Norte ficou sabendo que as subscrições feitas no estrangeiro eram um verdadeiro êxito: certos países distinguiam-se pela sua generosidade. Outros abriam a bolsa menos facilmente.

Questão de temperamento.

Eram cinco milhões quatrocentos e quarenta e seis mil seiscentos e setenta e cinco dólares que o público havia despejado nos cofres do Clube do Canhão.

Que ninguém se surpreenda com a importância de tal soma. Os trabalhos da fundição e blocagem, obra de pedra e cal, do transporte dos operários, as instalações numa região quase desabitada, a construção de fomos e de edifícios, aquisição das ferramentas para as fábricas, a pólvora e o projéctil, deviam, segundo os cálculos, absorver quase inteiramente essa quantia. Certos tiros de canhão na Guerra da Secessão custaram mil dólares; o do Presidente Barbicane, único na história da artilharia, podia bem custar cinco mil vezes mais.

A 20 de outubro, foi assinado um contrato com a fábrica de Goldspring, perto de Nova Iorque, que, durante a guerra, tinha fornecido a Parrott os seus melhores canhões.

Ficou estipulado entre as partes contratantes que a fábrica de Goldspring se comprometia a transportar para Tampa, na Flórida Meridional, o material necessário para a fundição do columbiad. Essa operação deveria estar terminada, o mais tardar, no dia 15 de outubro próximo, e o canhão devia ser entregue em bom estado, sob pena de uma indenização de cem dólares por dia até o momento em que a Lua se apresentasse nas mesmas condições, isto é, por quantos dias se podem contar em dezoito anos e onze dias. O contato com os operários, o seu pagamento, os arranjos necessários competiam à companhia de Goldspring. Este contrato, feito em duplicata e de bona fide, foi assinado por Barbicane, presidente do Clube do Canhão e J. Murchison, como diretor da fábrica de Goldspring, tendo ambas as partes dado plena aprovação às cláusulas estipuladas.

Desde a escolha feita pelos sócios do Clube do Canhão em detrimento do Texas, toda a gente na América onde todos sabem ler, se achou no dever de estudar geografia da Flórida. Nunca os livreiros venderam tanto exemplares sobre a Florida. Foi preciso imprimir novas e novas edições. Era um furor.

Barbicane tinha mais que fazer do que ler; queria ver com os seus próprios olhos e escolher a Posição do columbiad. Assim, sem perder um instante, pôs à disposição do Observatório de Cambridge os fundos para a construção de um telescópio e tratou com a casa Breadwill e a Companhia de Albany a fabricação do projéctil de alumínio e depois deixou Baltimore, acompanhado por J.T.Maston, pelo Major Elphiston e pelo diretor da fábrica de Goldspring.

No dia seguinte, os quatros companheiros chegaram à Nova Orleans. A embarcação imediatamente deu seu aviso da Marinha, que o governo pusera à sua disposição. Aquecidas as fornalhas, em poucos momentos deixaram de ver a costa da Luisiana.

Não foi uma longa a viagem. Dois dias, 400 milhas, tendo o navio chegado à vista da costa da Flórida. Ao aproximar-se, Barbicane viu-se em presença de uma terra baixa, plana, com aparência de muito pouco fértil. Depois de ter passado por unia série de enseadas ricas em ostras e lagostas, o Tampko chegou finalmente à Baía do Espírito Santo. Essa baía divide-se em duas barras alongadas, a de Tampa e a de Hiffisboro, cuja embocadura recebera o navio. Pouco tempo depois, apareceu o Forte Broocke, com as suas baterias erguidas acima das ondas, e surgiu a Cidade de Tampa, negligentemente recostada no fundo do pequeno porto natural formado pela foz do Rio Hillisboro.

Foi ali que ancoraram no dia 22 de outubro, às sete horas da noite; os quatro passageiros desembarcaram imediatamente. Barbicane sentiu o coração palpitar com violência quando pisou o solo da Flórida; parecia tateá-lo com os pés, como faz um arquiteto a uma casa cuja solidez pretenda experimentar.

J. T. Maston escavava a terra com a ponta do seu gancho.

- Senhores - disse então Barbicane - não temos tempo a perder, e a partir de amanhã montaremos a cavalo a fim de efetuar um primeiro reconhecimento ao território.

No momento em que Barbicane desembarcou os habitantes de Tampa tinham ido ao seu encontro, honra bem merecida pelo presidente do Clube do Canhão que os favorecem com a sua escolha. Receberam-no no meio de aclamações formidáveis; mas Barbicane fugiu às ovações e dirigiu-se para o seu quarto no Hotel Franklin, negando-se a receber quem quer que fosse. O papel de homem célebre não se combinava com ele.

No dia seguinte, 23 de outubro, pequenos cavalos de raça espanhola, cheios de vigor e de fogo, relinchavam sob as suas janelas. Mas em vez de quatro cavalos, encontravam-se ali cinquenta, com os seus cavaleiros. Barbicane desceu, acompanhado pelos companheiros, e ficou admirado por se encontrar no meio de semelhante cavalaria.
Observou também que cada cavaleiro trazia uma carabina a tiracolo e estava também armado de pistolas.

A razão de tal armamento foi-lhe dada por um jovem habitante da Flórida, que lhe disse:

- Senhor, é por causa dos índios.

- Que índios?

- Os selvagens que percorrem essas terras. Achamos, por isso, prudente escoltar-vos.

- Ora! - murmurou J. T. Maston, subindo para a sua montaria.

- É mais seguro! - replicou o jovem natural da Flórida.

- Agradeço-lhe, senhores - disse Barbicane - e agora, a caminho!

O pequeno grupo partiu e desapareceu pouco depois numa nuvem de poeira. Eram cinco horas da manhã. O Sol resplandecia e o termômetro marcava já vinte e oito graus centígrados; mas uma fresca brisa marítima amenizava essa temperatura excessiva.

Barbicane, ao deixar Tampa, desceu para o sul e seguiu ao longo da costa, de modo a atingir o riacho. Esse riozinho corre para a Baía Hillisboro, vinte quilômetro abaixo de Tampa. Barbicane e sua escolta correram ao longo da margem direita subindo para leste. Em breve, as ondas da baía desapareceram atrás de um acidente do terreno e só a campina se oferecia aos olhares dos cavaleiros.

A Florida divide-se em duas partes: uma ao norte, mais populosa, menos abandonada, que tem Taffahassee por capital e Pensacola, um dos principais arsenais marítimos dos Estados Unidos; a outra, comprimida entre o Atlântico e o golfo do México, que a estreitam entre as suas águas, é uma península corroída pela corrente do Golfo, língua de terra perdida no meio de um pequeno arquipélago, constantemente dobrada pelos pequenos navios do canal das Baamas. É um golfo das grandes tempestades. A superfície desse Estado é de trinta e oito milhões, trinta e três mil duzentos e sessenta e sete acres, dentro dos quais era preciso escolher um local situado para aquém do vigésimo oitavo paralelo e em condições convenientes para o empreendimento. Barbicane, à medida que cavalgava, examinava atentamente a configuração e a particular distribuição do solo.

A Florida, descoberta por Juan Ponce de Léon, em 1512, no dia de Ramos, chamou-se primeiro Páscoa Flórida. Merecia bem pouco esse nome encantador, dado às suas costas áridas e queimadas. Mas, a poucos quilômetros da margem, a natureza do terreno mudou pouco a pouco, e a região mostrou-se digna do primitivo nome; o solo era entrecortado por uma rede de pequenos cursos de água, de rios, de charcos, de pequenos lagos; julgar-se-ia a Holanda ou a Guiana; mas o campo dentro em pouco erguia-se sensivelmente e em breve começou a mostrar as suas planícies cultivadas, onde se davam todas as produções vegetais do Norte e do Sul; campos imensos, que o Sol dos trópicos e as águas conservadas na argila do solo beneficiavam, e depois, finalmente, os seus prados cobertos de ananases, de inhames, de tabaco, de arroz, de algodão e de cana-de-açúcar, que se estendiam a perder de vista, exibindo as suas imensas riquezas com descuidada prodigalidade. 

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Barbicane pareceu muito satisfeito com a progressiva elevação do terreno, e, quando J. T. Maston o interrogou a esse respeito, disse:

- Meu digno amigo: temos um interesse primordial em fundir o nosso columbiad em terreno extremamente alto.

- Para ficar mais perto da Lua? - indagou o secretário do Clube do Canhão.

- Não - respondeu Barbicane, sorrindo - Que importam alguns metros a mais ou a menos? Não, mas no meio de terrenos elevados processar-se-ão mais facilmente: não teremos de lutar contra as águas, o que nos evitará tubagens compridas e caras, e isso é um pormenor a considerar, quando se trata de abrir um poço de trezentos metros de profundidade.

- Tem razão - disse então o engenheiro Murchison - É preciso, tanto quanto possível, evitar os cursos de água durante a perfuração; mas se encontrarmos nascentes não tem importância; esgotá-las-emos com as nossas máquinas, ou desviá-las-emos. Não se trata aqui de um poço artesiano, estreito e escuro, onde a sonda, o cubo, a verruma, em uma palavra, todas as ferramentas do perfurador trabalham às cegas. Não, nós trabalhamos sob o céu aberto, à luz do dia, com a pá e a picareta na mão, e com o auxílio de algumas minas o nosso trabalho será feito rapidamente.

- No entanto - replicou Barbicane - se, pela elevação do solo ou pela sua natureza, nós pudermos evitar a luta com as águas subterrâneas, o trabalho será mais rápido e mais perfeito; procuraremos, portanto, abrir o nosso fosso num terreno situado algumas centenas de metros acima do nível do mar.

- Tem razão, senhor Barbicane - concordou o engenheiro - E, se não me engano, em breve encontraremos um local adequado.

- Ah, como gostaria de estar já ouvindo o primeiro golpe de picareta! - disse o presidente.

- E eu o último! - exclamou J. T. Maston. 

- Lá chegaremos senhores - profetizou o engenheiro Murchison - e, podem crer, a companhia de Goldspring não terá de lhes pagar a indenização por dias...

- Por Santa Bárbara! Tem razão - replicou J. T. Maston - cem dólares por dia até que a Lua se apresente nas mesmas condições, isto é, durante dezoito anos e onze dias. Sabe que seriam seiscentos e cinqüenta e oito mil e cem dólares?

- Não senhor, não sabemos - respondeu o engenheiro - nem teremos necessidade de o saber.

Por volta das dez horas da manhã, o pequeno de estancamento tinha percorrido uma boa dúzia de milhas, aos campos férteis sucedera-se a região das florestas. Ali cresciam as árvores mais variadas cores e formas, uma profusão tropical. Essas florestas quase impenetráveis eram formadas por limoeiros, laranjeiras, romãzeiras, figueiras, oliveiras, damasqueiros, bananeiras e grandes cepas de vinha, cujos frutos e flores rivalizavam em cor e perfume. A sombra perfumada dessas árvores magníficas esvoaçava todo um mundo de pássaros de cores brilhantes, no meio dos quais se distinguiam principalmente os airões, cujo ninho devia ser um cofre para ser digno dessas preciosidades emplumadas.

J. T. Maston e o major não podiam encontrar-se na presença dessa natureza opulenta sem admirar tão esplêndidas belezas. Mas o Presidente Barbicane, pouco sensível a essas maravilhas, tinha pressa de continuar; aquela região tão fértil desagradava-lhe pela sua própria fertilidade. Sem ser hidróscopo, sentia a água debaixo dos seus pés e procurava, em vão, sinais de uma incontestável aridez.

No entanto, iam avançando; foi preciso passar por vários rios, e não sem perigo, pois estavam infestados de crocodilos de quinze a dezoito pés de comprimento. J. T. Maston ameaçou-os ousadamente com o seu temível gancho, mas só conseguiu ameaçar os pelicanos, as narcejas e outras aves selvagens, habitantes daquelas margens, enquanto grandes flamingos vermelhos o olhavam com ar estúpido. Finalmente, esses hóspedes das zonas úmidas desapareceram por sua vez; árvores menos espessas agrupavam-se em bosques pouco densos; alguns grupos isolados destacavam-se no meio de planícies infinitas, onde perpassavam bandos de gamos assustados.

- Até que enfim! - gritou Barbicane, erguendo-se nos estribos - Aqui está a região dos pinheiros!

- E dos selvagens! - acrescentou o major.

Com efeito, surgiram no horizonte alguns índios; agitavam-se, corriam de um lado para o outro nos seus cavalos. Rápidos, brandindo longas lanças ou disparando as suas espingardas de detonação surda; de resto, limitaram-se a essas demonstrações hostis, sem inquietarem Barbicane e os seus companheiros. Estes se encontravam então no meio de uma planície rochosa, vasto espaço descoberto de uma extensão de vários acres, que o Sol inundava com os seus raios escaldantes. Era formado por uma grande elevação do terreno, que parecia oferecer aos membros do Clube do Canhão todas as condições requeridas para a instalação do columbiad.

- Alto! - exclamou Barbicane, parando - Este lugar tem algum nome?

- Chama-se Colina das Pedras - esclareceu um dos da Flórida.

Barbicane, sem dizer palavra, desmontou, pegou nos seus instrumentos e começou a calcular a posição com uma precisão extrema; o pequeno grupo, reunido em volta dele, observava-o num silêncio profundo.

Nesse momento, o Sol passava no meridiano. Barbicane, passados alguns momentos, enumerou rapidamente o resultado das suas observações:

- Este local fica situado a trezentas toesas acima do nível do mar. Pela natureza árida e rochosa e pelas medidas em grau da latitude e longitude, parece-me oferecer todas as condições favoráveis à experiência; será, portanto, nesta planície que se erguerão os nossos armazéns, as nossas oficinas, os nossos fornos, os dormitórios dos nossos operários, e será daqui, daqui mesmo - repetiu batendo com o pé no chão no cimo da Colina das Pedras -, que o nosso projéctil partirá para os espaços do mundo solar!

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