Capítulo II - A instalação

Uma vez ouvida esta curiosa mas, por certo, exata explicação, os três amigos voltaram a mergulhar num profundo sono. Aquele projétil, vagando no vazio absoluto, podia oferecer aos seus hóspedes um repouso absoluto.

Deste modo, o sono dos três viajantes teria podido prolongar-se indefinidamente se um imprevisto rumor não os tivesse despertado por volta das sete horas da manhã do dia 2 de dezembro, cerca de oito horas depois da partida. Aquele rumor era um latido muito característico.

- Os cães! São os cães! - exclamou Michel Ardan, levantando-se de um pulo.

- Têm fome - concluiu Nicoles.

- Meu Deus! - prosseguiu Michel.

- Esquecemo-nos deles!

- Onde estão? - quis saber Barbicane.

Procuraram e encontraram um dos animais enroscado debaixo do sofá. Amedrontado, atordoado pelo choque inicial, conversara-se no seu canto até o momento em que sentiu o estímulo da fome e, com ele, as forças para latir.

Era a simpática Diana, que, ainda cheia de medo, ia saindo do seu esconderijo, não sem antes se fazer muito rogada. Michel Ardan tentava encorajá-la com as suas mais doces palavras:

- Vem, Diana, vem minha pequenina! Tu, cujo destino será assinalado nos anais cinegéticos! Tu, que os pagãos teriam dado por companheira ao deus Anúbis, e os cristãos por amiga a São Roque! Tu, digna  e seres moldada no bronze do rei dos Infernos, como esse cachorrinho que Júpiter ofereceu à bela Europa em troca de um beijo! Tu, cuja celebridade ofuscará a dos heróis de Montargis e do Monte São Bernardo! Tu, que, elevando-te nos espaços interplanetários, serás por força a Eva dos cães selenitas! Tu justificarás lá em cima esta frase de Toussene: “No início, Deus criou o homem e, vendo-o tão débil, deu-lhe o cão!” Vem Diana!

- Vem aqui!

Diana, lisonjeada ou não, avançava lentamente, emitindo gemidos comovedores.

- Bem! - disse Barbicane. Encontramos a Eva, mas por onde andará o Adão?

- Adão! - exclamou Michel Adão - não pode estar longe! Está por aí, em qualquer canto! Chamemo-lo! Satélite, aqui1 Satélite!

Mas Satélite não aparecia. Diana continuava a gemer. Entretanto, verificaram que não estava ferida e deram-lhe uma apetitosa mistura de pão com pedacinhos de carne, que pôs termo aos seus lamentos.

Quanto a Satélite, parecia ter-se volatilizado. Foi necessário procurar pacientemente para descobri-lo num dos compartimentos superiores do projétil, para onde um inexplicável impulso o havia violentamente lançado. O pobre animal, muito atordoado, estava num estado lastimoso.

- Com mil diabos? - bradou Michel - A nossa experiência de aclimatação está comprometida.

Desceram o infeliz cão com as maiores precauções. A cabeça tinha batido na cúpula e tudo indicava que seria difícil recuperá-lo de tal pancada. Apesar disso, estenderam-no confortavelmente sobre uma almofada, e ali Satélite deixou escapar um longo suspiro.

Vamos curar-te - disse Michel - Somos responsáveis pela tua existência. Preferia perder um braço a perder uma pata do meu pobre Satélite!

E, dizendo isto, deu um pouco de água ao ferido, que a bebeu avidamente.

Prestados estes cuidados, os viajantes puseram-se a observar a Terra e a Lua. A Terra era apenas um disco cendrado, cujo crescente se esbatera um tanto desde a véspera, embora o seu volume permanecesse enorme em relação ao da Lua, que se aproximava cada vez mais da forma do circulo perfeito.

- Por minha fé! - acabou de dizer Michel Ardan - estou mesmo aborrecido por não termos partido no momento da terra cheia, quero dizer, quando o nosso Globo se encontrava em oposição com o Sol.

- Por quê? - inquiriu Nicoles.

- Porque teríamos visto sob a luz inteiramente nova os nossos continentes e mares, estes resplandecendo sob a projeção dos raios solares, aqueles mais escuros, tal como se reproduzem em certos mapas mundi. Como gostaria de ver os pólos terrestres, sobre os quais nenhum olhar humano pousou ainda!

- Sem dúvida, tudo isso está muito certo - atalhou Barbicane - Mas, se a Terra estivesse em terra cheia, a Lua estaria em lua nova, isto é, invisível no meio da irradiação solar. E a nós convém mais ver o ponto de chegada que o de partida.

- Tem toda razão - concordou o Capitão Nicoles - De resto, quando atingirmos a Lua, teremos tempo, durante as longas noites lunares, de observar a nosso bel-prazer esse
Globo onde formigam os nossos semelhantes!

- Os nossos semelhantes! - surpreendeu-se Michel Ardan.

 - Mas agora são tão nossos semelhantes como os selenitas! Nós habitamos um mundo novo, cuja População somos nós... O Projétil! Além de nós, fora de nós, a humanidade acaba. Somos únicos habitantes deste microcosmo, até o glorioso instante em que nos tornemos simples selenitas! Dentro de oitenta e oito horas aproximadamente - Precisou o capitão.

- O que significa?... - perguntou Michel Ardan.

- Que são oito e meia - esclareceu Nicoles.

- Pois bem - respondeu Michel - não consigo vislumbrar razões que nos possam impedir de almoçar imediatamente. Na verdade, os habitantes do novo astro não poderiam sobreviver sem comer, e os seus estômagos sentiam já os efeitos da fome.

Michel Ardan, como bom francês que era, proclamou-se cozinheiro-chefe, importante função para a qual não tinha, aliás, concorrentes. O gás proporcionou os Poucos graus de calor suficientes para os preparativos culinários e a arca de provisões forneceu os gêneros para a primeira refeição.

Procederam em seguida ao inventário dos instrumentos. Os termômetros e os barômetros resistiram, salvo um termômetro de mínima, cujo reservatório se partiu. Um excelente aneróide, retirado do estojo acolchoado que o protegia, foi pendurado numa das paredes. Naturalmente, as indicações do aparelho diziam apenas respeito à pressão da atmosfera existente dentro do projétil, cujo índice hidrométrico também indicava. Naquele instante a agulha oscilava entre 760 e 765 milímetros. Assinalava, Portanto, “bom tempo”.

Barbicane trouxera também várias bússolas, que foram encontradas intactas. Compreende-se que naquelas condições as suas agulhas estivessem “loucas”, isto é, sem direção constante. De fato, dada a distância a que o projétil estava da Terra, o pólo magnético não podia exercer sobre os instrumentos qualquer ação.

Contudo, aquelas bússolas, uma vez transportadas para a superfície lunar, talvez pudessem indicar quaisquer fenômenos magnéticos ali existentes. Em todo o caso, seria interessante saber se o satélite da Terra estava, como esta, submetido à influência magnética. Quanto aos utensílios, picaretas, enxadas e outras ferramentas que Nicoles havia selecionado propositadamente, bem como as sacas de sementes variadas e as plantas que Michel Ardan se propunha a transplantar em solo selenita, estavam em ordem.

Barbicane verificou, também, que os foguetes e os outros fogos de artifício não haviam sofrido danos. Eram de fato peças importantes, dotadas de potentes cargas, que estavam destinadas a atenuar a queda do projétil quando este arrastado pela força de atração caísse na superfície da Lua. O mesmo espetáculo! Em toda a sua extensão, a esfera celeste formigava de estrelas e de constelações de uma maravilhosa pureza que fariam perder a cabeça a um astrônomo.

De um lado o Sol, qual boca de forno inflamado, disco deslumbrante sem auréola, destacava-se do fundo negro do céu. Do outro lado, a Lua refletia a luz do Sol, aparentemente imóvel no meio do mundo estelar. Depois, uma mancha muito nítida que parecia furar o firmamento e tinha ainda uma estreita orla prateada: era a Terra!

Os observadores não conseguiam desviar os olhos daquele espetáculo inédito, do qual nenhuma descrição poderá dar uma pálida idéia.

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