Capítulo XIII - O vagão-projétil


Depois de terminado o célebre columbiad, o interesse do público incidiu imediatamente sobre o projétil, esse novo veículo destinado a transportar através do espaço os três ousados aventureiros. Ninguém se tinha esquecido de que, no seu telegrama de 30 de setembro, Michel Ardan pedia uma modificação nos planos feitos pelos membros da Comissão.

O Presidente Barbicane pensava então com razão que a forma do projétil importava pouco, pois, após ter atravessado a atmosfera em poucos segundos, o seu percurso devia efetuar-se no vácuo total. A Comissão adotara, portanto, a forma redonda, a fim de que o projétil pudesse girar sobre si mesmo e comportar-se segundo a sua fantasia.

Contudo, desde o momento em que era transformado em veículo, o caso era diferente. Michel Ardan não queria viajar da maneira dos esquilos; queria subir de cabeça para cima e pés para baixo, com tanta dignidade como na barquinha de um balão, mais depressa sem dúvida, mas sem se entregar a uma série de cambalhotas pouco convenientes.

Novos planos foram, portanto, enviados à casa Breadwill & Cia, de Albany, com a recomendação de serem executados sem demora. O projétil, assim modificado, foi fundido a 2 de novembro e enviado imediatamente à Colina das Pedras pela estrada de ferro do leste. Chegou sem acidentes ao seu local de destino. Michel Ardan, Barbicane e Nicoles esperavam com a mais viva impaciência aquele “vagão- projétil” no qual deviam tomar lugar para voarem à descoberta de um novo mundo.

É preciso concordar que se tratava de uma magnífica peça de metal, de um produto metalúrgico que fazia a honra ao gênio industrial dos americanos. Acabava-se de obter pela primeira vez o alumínio numa quantidade tão considerável, que poderia ser justamente considerado como um resultado prodigioso. Esse precioso projétil cintilava sob os raios do Sol. Ao vê-lo com as suas formas imponentes e encimado pelo seu chapéu cônico, tomar-se-ia de boa vontade por uma dessas torres em forma de pimenteiros, que os arquitetos da Idade Média suspendiam nos cantos dos castelos fortificados.
- Fico à espera - dizia Michel Ardan - de ver de lá sair um homem de armas, usando um arcabuz e armadura de aço. Estaremos lá dentro como feudais, e com um pouco de artilharia faríamos frente a todos os exércitos selenitas, se é que os há na Lua!

- Então, o veículo agrada-te? - perguntou Barbicane ao seu amigo.

- Sim, Sim! Sem dúvida - respondeu Michel Ardan, que o observava como artista - Lamento apenas que as suas formas não sejam mais esguias, o seu cone mais gracioso; devia ser terminado com um tufo de enfeites em metal lavrado, com uma quimera, por exemplo, uma carranca ou uma salamandra saindo do fogo com as faces escancaradas...

- Para quê? - disse Barbicane, cujo espírito, positivo, era pouco sensível às belezas da arte.

- Para quê, amigo Barbicane! Visto que me perguntas, creio que nunca o compreenderás.

- Mas diga-me, meu caro companheiro.

- Pois bem; conforme a minha opinião é preciso por sempre um pouco de arte naquilo que se faz. É melhor. Conheces uma peça indiana que se chama ‘O Carro da Criança?’ –

- Nem sequer de nome - respondeu Barbicane.

- Isto não me espanta - replicou Michel Ardan - Fique sabendo que, nessa peça, há um ladrão que, no momento de furar a parede de uma casa, pergunta a si mesmo se fará ao seu buraco a forma de uma lira, de uma flor, de um pássaro ou de uma ânfora. Dize-me, então, amigo Barbicane, se tu fosses membro do júri condenarias esse ladrão?

- Sem hesitar - respondeu o presidente do Clube do Canhão - e com a agravante do arrombamento.

- E eu o absolveria, amigo Barbicane! Por isto, nunca poderás compreender-me!

- Nem sequer tentarei, meu valente artista.

- Mas pelo menos – replicou Michel Ardan – visto que o exterior do nosso projétil deixa muito a desejar, permita-me que o decore à minha vontade, e com todo o luxo conveniente aos embaixadores da Terra!

- A esse respeito, meu bom Michel - respondeu Barbicane - podes agir segundo a tua fantasia, pois te deixaremos proceder à vontade.

Porém, antes do agradável, o presidente do Clube do Canhão tinha pensado no útil, e os meios inventados por ele para diminuir os efeitos de repercussão foram aplicados com perfeita inteligência.

Barbicane havia pensado, não sem razão, que nenhuma mola seria suficientemente poderosa para amortecer o choque, e, durante o seu famoso passeio no bosque de Skersnaw, acabara por resolver essa grande dificuldade de uma forma engenhosa. Era à água que ele ia pedir que lhe prestasse esse notável serviço. Vamos ver como.
O projétil deveria ser cheio até a altura de três pés com uma camada de água destinada a suportar um disco de madeira perfeitamente estanque, que ficaria encostado às paredes internas do projétil. Era sobre essa verdadeira jangada que os viajantes tomariam lugar. Quanto à massa líquida, era dividida por compartimentos horizontais, que o choque da partida devia quebrar sucessivamente. Então, cada lençol de água, do mais baixo ao mais alto, saindo por tubos que iam ter à parte superior do projétil, serviria assim de mola, e o disco, munido de tampões extremamente poderosos, apenas podia bater na parte inferior depois do sucessivo esmagamento dos diversos tabiques. Sem dúvida, os viajantes sentiriam ainda unia violenta sacudidela após a massa líquida ter saído completamente, mas o primeiro choque deveria ser quase inteiramente anulado por aquele amortecedor de grande potência.

É verdade que três pés de água numa superfície de cinquenta e quatro pés quadrados deviam pesar perto de onze mil e quinhentas libras; mas a expansão dos gases acumulados no columbiad bastaria, segundo a opinião de Barbicane, para vencer esse acréscimo de peso; de resto, o choque devia expulsar toda a água em menos de um segundo, e o projétil voltaria a ter rapidamente o seu peso normal.

Eis o que tinha imaginado o presidente do Clube do Canhão, e de que modo ele pensava ter resolvido a grave questão da repercussão. Esse trabalho, inteligentemente compreendido pelos engenheiros da Casa Breadwill, foi maravilhosamente executado; uma vez produzido o efeito e a água expelida para fora, os viajantes poderiam se desembaraçar facilmente dos tabiques quebrados e desmontar o disco móvel onde se apoiariam no momento da partida.

Quanto às paredes superiores do projétil, eram revestidas de um espesso acolchoado de couro, aplicado sobre espirais do melhor aço, que tinham a leveza das molas de relógio. Os tubos de escape, dissimulados sob esse acolchoado, não deixavam sequer desconfiar da sua existência.

Assim, tinham sido tomadas todas as precauções possíveis e imaginárias para amortecer o primeiro choque, e para se deixarem esmagar, como dizia Michel Ardan, era preciso que fossem de muito ‘má raça’.

O projétil media exteriormente nove pés de largura por doze de altura. Para não ultrapassar o peso previsto, tinham diminuído ligeiramente a espessura das suas paredes externas e reforçado a parte inferior, que devia suportar toda a violência dos gases desenvolvidos pela deflagração do piróxilo. Sucede assim nas bombas e obuses cilindro-cônicos, cujo fundo é sempre mais espesso.

Penetrava-se nessa torre de metal por uma estreita abertura feita nas paredes do cone. A abertura era fechava hermeticamente por meio de uma chapa de alumínio, preso no interior por meio de fortes parafusos de pressão. Os viajantes poderiam sair à vontade da sua prisão móvel, logo que atingissem o astro da noite.

Contudo, não era preciso apenas ir: forçoso era também ver. Nada mais fácil. Realmente, sob o acolchoado encontravam-se quatro vigias de vidro de lente, de grande espessura, duas abertas na parede circular do projétil, uma terceira na parte inferior e a última no seu chapéu cônico. Os viajantes teriam, portanto, oportunidade de observar, durante o seu percurso, a Terra que acabavam de abandonar, a Lua de onde se aproximavam e os espaços constelados do céu. No entanto, essas vigias estavam protegidas contra os choques da partida por placas solidamente presas, fáceis de ser retiradas desatarraxando os parafusos interiores. Desse modo, o ar contido no projétil não podia escapar, e as observações tornavam-se possíveis.

Todos esses mecanismos, admiravelmente estabelecidos, funcionavam com a maior facilidade, e os engenheiros não se tinham mostrado menos inteligentes no arranjo do vagão-projétil.

Recipientes solidamente presos eram destinados a conter a água e os víveres necessários aos três viajantes; estes podiam até ter fogo e luz com o gás armazenado num recipiente especial, sob uma pressão de várias atmosferas. Bastava virar uma chave e durante seis dias esse gás deveria iluminar e aquecer esse confortável veículo. Como se vê, não faltava nada daquilo que era essencial à vida e mesmo ao bem- estar.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Além disso, graças aos instintos de Michel Ardan, o agradável viera juntar-se ao útil sob a forma de objetos de arte; teria feito do projétil uma verdadeira galeria de arte se o espaço não lhe faltasse. De resto, enganar-se-ia quem julgasse que três pessoas ficassem apertadas nessa torre de metal. Tinha uma superfície de cinquenta e quatro pés quadrados, mais ou menos, por dez pés de altura, o que permitia uma certa liberdade de movimentos. Não estariam mais à vontade no mais confortável dos vagões de estrada de ferro dos Estados Unidos.

Estando resolvida a questão dos víveres e da iluminação, restava a do ar. Era evidente que o ar encerrado dentro do projétil não seria suficiente para a respiração dos viajantes durante quatro dias; cada homem consome, em cerca de uma hora, todo o oxigênio contido em cem litros de ar. Barbicane, os seus companheiros e os dois cães que tencionavam levar deviam consumir, em vinte e quatro horas, dois mil e quatrocentos litros de oxigênio, ou, em peso, aproximadamente sete libras. Era, portanto, necessário renovar o ar do projétil. Como? Por um processo muito simples, o dos senhores Reiset e Regnault, indicado por Michel Ardan durante a discussão da assembléia.

Sabe-se que o ar se compõe principalmente de vinte e uma partes de oxigênio e de setenta e nove partes de nitrogênio. Ora, que se passa ao ato da respiração? Um fenômeno muito simples. O homem absorve o oxigênio do ar, eminentemente apropriado para manter a vida, e repele o nitrogênio intacto. O ar expirado perdeu perto de cinco por cento do seu oxigênio e contém um volume aproximadamente igual de ácido carbônico, produto definitivo da combustão dos elementos do sangue pelo oxigênio inspirado. Sucede então que num meio fechado, e após certo tempo, o ar é substituído pelo ácido, gás essencialmente venenoso.

A questão reduz-se então ao seguinte: ficando o nitrogênio intacto, era preciso refazer primeiro o oxigênio absorvido, e depois destruir o ácido carbônico expirado. Nada mais fácil por meio de clorato de potássio e de potassa cáustica. O clorato de potássio é um sal que se apresenta sob a forma de palhetas brancas; quando é levado a uma temperatura superior a quatrocentos graus, transforma-se em cloreto de potássio, e o oxigênio que contém liberta-se inteiramente. Ora, dezoito libras de clorato de potássio dão sete libras de oxigênio, isto é, a quantidade necessária aos viajantes durante vinte e quatro horas. Eis como eles iam rarefazer o oxigênio.

Quanto à potassa cáustica, é uma matéria muito ávida de ácido carbônico, misturado com o ar, e basta agitá-lo para que se apodere dele e forme bicarbonato de potássio. Eis o que eles teriam de fazer para absorver o ácido carbônico.
Combinando esses dois meios, tinham a certeza de dar ao ar viciado todas as suas propriedades vivificantes. Era o que dois químicos, os senhores Reiset e Regnault, tinham experimentado com êxito. Mas, é preciso dizê-lo; a experiência tinha-se realizado até então em animais. Qualquer que fosse a sua precisão científica, ignorava-se totalmente como os homens a suportariam.

Foi essa a observação feita na sessão onde se tratou dessa grave questão. Michel Ardan não queria pôr em dúvida a possibilidade de viver no meio desse ar fictício, e ofereceu- se para experimentar antes da partida. Mas a honra de tentar essa prova foi energicamente reclamada por J. T. Maston.

- Visto que não partirei - disse o bravo artilheiro - posso pelo menos morar no projétil durante oito dias.

Não teria sido amável recusar-lhe esse pedido. Quantidades suficientes de clorato de potássio e de potassa cáustica foram postas à sua disposição, bem como víveres para oito dias; depois, tendo apertado as mãos dos seus amigos, no dia 12 de novembro, às seis horas da tarde, Maston deslizou para o projétil, tendo expressamente recomendado que não lhe abrissem a prisão antes do dia 20. A tampa foi então fechada.

No dia 20 de novembro, às seis horas em ponto, a tampa foi aberta. Os amigos de J. T. Maston não deixavam de estar um pouco inquietos. Mas logo se tranqüilizaram ao ouvirem unia voz alegre que soltava um formidável hurra. Em breve, o secretário do Clube do Canhão aparecia no alto do cone numa atitude triunfante. Tinha engordado!

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