Capítulo XIV - O telescópio e os últimos preparativos

Em outubro do ano precedente, depois de fechada a subscrição, o presidente do Clube do Canhão tinha creditado ao Observatório de Cambridge as quantias necessárias para a construção de um instrumento ótico.

Antes de qualquer coisa, foi preciso optar entre os telescópios e as lunetas. As lunetas apresentam vantagens sobre os telescópios. Com igualdade de objetivas, permitem obter aumentos mais consideráveis, porque os raios luminosos que atravessam as lentes perdem menos pela absorção do que pela reflexão sobre o espelho metálico dos telescópios. Mas a espessura que se pode dar a uma lente é limitada pois, sendo demasiado espessa, não deixa passar os raios luminosos. Além disso, a construção dessas grandes lentes é excessivamente difícil e precisa de um tempo considerável, que se mede em anos.

Portanto, se bem que as imagens fossem mais bem iluminadas nas lunetas, vantagem inapreciável quando se trata de observar a Lua, cuja luz é simplesmente refletida, decidiram-se pela utilização de um telescópio, que é de execução mais rápida e permite obter uma ampliação maior. No entanto, como os raios luminosos perdem uma grande parte da sua intensidade ao atravessar a atmosfera, o Clube do Canhão resolveu instalar o instrumento numa das mais altas montanhas dos Estados Unidos, o que diminuiria a espessura das camadas aéreas. 

Quanto à questão do local, foi prontamente resolvida. Tratava-se de escolher uma montanha alta, e as montanhas altas não são numerosas nos Estados Unidos.

Contudo, visto que o Clube do Canhão queria que o telescópio, assim como o columbiad, ficassem instalados nos Estados Unidos, contentavam-se com as Montanhas Rochosas, e todo o material necessário foi dirigido para o cimo de Long’s Peak, no território do Missuri.

Todavia, o telescópio das Montanhas Rochosas, antes de servir ao Clube do Canhão, prestou imensos serviços à astronomia. Graças ao seu poder de penetração, as profundidades do céu foram sondadas até os últimos limites, o diâmetro aparente das estrelas pode ser rigorosamente medido, e o senhor Clarke, do Observatório de Cambridge, decompôs a nebulosa com forma de caranguejo de Taurus, que o refletor de Lorde Rosse nunca pudera decompor.

Já era 22 de novembro; A partida suprema devia ter lugar dez dias mais tarde. Restava apenas levar a bom termo uma única operação. Operação delicada, perigosa, exigindo precauções infinitas e contra o bom sucesso da qual o Capitão Nicoles fizera a sua terceira aposta. Tratava-se de carregar o columbiad e introduzir-lhe as quatrocentas mil libras de algodão-pólvora. Nicoles pensara, e talvez com certa razão, que a manipulação de tal quantidade de piróxilo poderia provocar graves catástrofes, e que essa massa eminentemente explosiva se inflamaria por si mesma sob a pressão do projétil.

Havia, realmente, graves perigos, ainda acrescidos pela despreocupação e a leviandade dos americanos, que não se preocupavam em nada, durante a Guerra da Secessão, em ir carregar os seus canhões de charuto na boca. Mas Barbicane tinha tomado a peito ter êxito e não naufragar na beira da praia; escolheu, portanto, os seus melhores operários e os fez trabalhar sob a sua vigilância. Não os deixando um só momento fora de seu olhar, e à força de prudência e de precauções, soube por do seu lado todas as possibilidades de êxito.

Antes de tudo, não levou todo o carregamento para a Colina das Pedras. fez transportá-lo pouco a pouco em caixotes hermeticamente fechados. A munição tinha sido dividi- da em embalagens de quinhentas libras o que perfazia oitocentos grandes cartuchos cuidadosamente confeccionados pelos mais hábeis operários de Pensacola. Cada caixote podia conter dez cartuchos e chegava um após outro pela estrada de ferro de Tampa; desse modo, não havia nunca mais de cinco mil libras de piróxilo ao mesmo tempo dentro do recinto. Logo cada caixote que chegava era descarregado por operários que caminhavam de pés descalços, e cada cartucho transportado para o orifício do columbiad, para o qual descia por meio de guindastes acionados manualmente.

Todas as máquinas a vapor tinham sido afastadas, e as menores fontes de fogos forma apagadas numa zona de duas milhas de raio. Já era muito ter de proteger essa enorme quantidade de algodão-pólvora dos ardores do sol, mesmo em novembro. Desse modo, trabalhavam de preferência durante a noite, com uma luz produzida no vácuo, e que, por meio dos aparelhos de Ruhnlkorff, criava um dia artificial até ao fundo do columbiad. Ali, os cartuchos eram arrumados com uma perfeita regularidade e ligados entre si por meio de um fio metálico destinado a levar simultaneamente a faísca elétrica para o centro de cada um deles.
 
Realmente, por meio da pilha é que o fogo devia ser comunicado a essa massa de algodão-pólvora. Todos esses fios, rodeados de material isolante, iam reunir-se em um só estreito. Orifício foi aberto na altura onde deveria ser mantido o projétil. Nesse ponto, atravessaram a espessa parede de ferro fundido, subindo até ao solo por um dos respiradouros do revestimento de pedra conservado para esse fim. Uma vez chegado ao cimo da Colina das Pedras, o fio, preso a postes por uma distância de duas milhas, ia ter a uma poderosa pilha de Bunzen munida de um aparelho interruptor. Bastava, portanto, carregar com o dedo no botão do aparelho para que a corrente fosse instantaneamente restabelecida e pegasse fogo as quatrocentas mil libras de algodão-pólvora. Desnecessário dizer que a pilha só devia entrar em atividade no último momento.

Em 28 de novembro, os oitocentos cartuchos estavam colocados no fundo do columbiad. Essa parte da operação correu sem problemas; todavia, quantas perturbações, quantas inquietudes e apreensões tinham assaltado o Presidente Barbicane! Em vão proibira o acesso à Colina das Pedras; todos os dias os curiosos escalavam as paliçadas, e alguns, levando a imprudência até a loucura, iam fumar no meio das embalagens de algodão pólvora.

Barbicane enfurecia-se diariamente. J. T. Maston secundava-o o melhor possível, caçando os intrusos com grande vigor e apanhando as pontas de cigarros ainda acesas que os ianques atiravam para aqui e para ali. Rude tarefa, pois mais de trezentas mil pessoas se comprimiam em redor das paliçadas. Michel Ardan tinha-se oferecido para escoltar os caixotes até a boca do columbiad; mas, tendo sido surpreendido com um enorme charuto na boca, enquanto afastava os imprudentes aos quais ele dava aquele funesto exemplo, o presidente do Clube do Canhão viu bem que não podia contar com aquele intrépido fumador, e foi obrigado a vigiá-lo especialmente.

Finalmente, como há um Deus para os artilheiros, nada explodiu e o carregamento foi levado sem incidentes. A terceira aposta do Capitão Nicoles estava, portanto, muito periclitante. Faltava introduzir o projétil no columbiad e colocá-lo sobre a espessa camada de algodão pólvora.

Todavia, antes de proceder a essa operação, os objetos necessários aos três, aliás, muito numerosos, foram colocados com ordem no vagão-projétil, e, se tivessem deixado, Michel Ardan teria ocupado todo o espaço reservado aos viajantes. Não se pode imaginar o que esse amável francês queria levar para a Lua. Uma verdadeira carga de inutilidades. Mas Barbicane interveio e ele teve de se restringir ao estritamente necessário. Vários termômetros, barômetros e lunetas foram guardados na caixa dos instrumentos.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Os viajantes tinham curiosidade em examinar a Lua durante o trajeto, e, para facilitar o reconhecimento desse mundo novo, levavam um excelente mapa de Beer e Moedier, o Mapa Selenográfico, publicado em quatro folhas que é aceito por verdadeiro, por ser uma obra-prima em observação e de paciência. Reproduzia com escrupulosa exatidão os mínimos pormenores dessa parte do astro voltada para a Terra: montanhas, vales, círculos, crateras, elevações, fendas. Viam-se ali, nas suas dimensões exatas, a sua orientação fiel, a sua denominação, desde os montes Doerfel e Leibniz, cujos altos cumes se erguem na parte oriental do disco, até o Mar do Frio, que se estende pelas regiões circumpolares do Norte.

Era, portanto, um precioso documento para os viajantes, pois podiam estudar o território antes de lá chegar.

Levavam também três espingardas e três carabinas de caça com sistema de balas explosivas; além disso, pólvora e chumbo em grande quantidade.

- Não se sabe com quem teremos de tratar - dizia Michel Ardan - Homens ou animais, poderão não gostar de visitas! É preciso, portanto, tomar precauções.

Acrescentemos que às armas de defesa pessoal se juntaram as picaretas, alviões, serras manuais e outros instrumentos indispensáveis, sem falar do vestuário conveniente para todas as temperaturas, desde o frio das regiões polares até os calores da zona tórrida.

Michel Ardan gostaria de levar para a sua expedição certo número de animais, não um casal de cada espécie, pois não via necessidade de aclimatar na Lua serpentes, tigres, crocodilos e outros animais malignos.

- Não - dizia ele a Barbicane - mas alguns animais de tração, bois ou vacas, burros ou cavalos, ficariam bem na paisagem e seriam de grande utilidade para nós.

Concordo meu caro Ardan - respondia Barbicane - todavia o nosso vagão-projétil não é a Arca de Noé. Não tem a capacidade nem se destina ao mesmo fim. Assim, fiquemos nos limites do possível.

Finalmente, após longas discussões, foi combinado que os viajantes se contentariam em levar uma excelente cadela de caça, pertencente a Nicoles, e um vigoroso terra-nova, de força prodigiosa. Várias caixas dos cereais mais úteis foram postas no número dos objetos indispensáveis. Se tivessem deixado Michel Ardan fazer o que queria, ele teria levado também alguns sacos de sementes para lá os semear. Em todo o caso, levou uma dúzia de arbustos, que foram cuidadosamente envolvidos em palha e guardados a um canto do projétil.

Faltava, ainda, a importante questão dos víveres, pois era preciso prever o caso de desembarcarem numa zona da Lua completamente estéril. Barbicane conseguiu levar víveres que chegariam para um ano. Mas, é preciso acrescentar para não espantar ninguém, que esses víveres consistiam em conservas de carne e de legumes reduzidos ao seu mais simples volume sob a ação da prensa hidráulica, e que essas conservas tinham grande quantidade de elementos nutritivos; não eram refeições muito variadas, mas em tal viagem não podiam mostrar-se muito exigentes. Havia, também, uma reserva de aguardente, que podia chegar a cinquenta galões. A água duraria apenas para dois meses. Realmente, depois das últimas observações dos astrônomos, ninguém colocava em dúvida a presença de certa quantidade de água na superfície da Lua.

Quanto aos víveres, era insensato pensar que os habitantes da Terra não encontrariam lá com que se alimentar. Michel Ardan não tinha dúvida nenhuma a esse respeito. Se as tivesse, não partiria.

- Por outro lado - disse ele um dia aos seus amigos - não estaremos completamente abandonados pelos nossos camaradas da Terra, e eles terão o cuidado de não nos esquecer.

- Certamente que não - replicou J. T. Maston

- Como? - perguntou Nicoles.

- Nada mais simples - respondeu Michel Ardan - O columbiad fica no mesmo lugar, não é verdade? Pois bem! Todas as vezes que a Lua se apresentar nas condições favoráveis de zênite, ou mesmo de perigeu, isto é, mais ou menos uma vez por ano, não poderão enviar-nos um obus carregado de víveres que nós esperaremos em alguma hora prefixada?

- Viva! Viva! - exclamou J. T. Maston, como se ele mesmo tivesse tido a ideia - bem dito. Certamente, meus bons amigos, que nós não  seremos esquecidos.

- Conto com isto! Como vêem, teremos regularmente notícias do Globo, e, por nosso lado, seremos bem desajeitados se não conseguirmos arranjar meio de comunicar com os nossos bons amigos da Terra!

Destas palavras transpirava uma tal confiança que Michel Ardan, com o seu ar determinado, a sua soberba valentia, teria arrastado todos os membros do Clube do Canhão atrás de si. O que ele dizia parecia simples, elementar, fácil, de êxito seguro, e seria preciso gostar verdadeiramente deste miserável globo terráqueo para não seguir os três viajantes na sua expedição lunar.

Quando os diversos objetos foram colocados no projétil, a água destinada a servir de mola foi introduzida entre os tabiques e o gás de iluminação no respectivo recipiente. Quanto ao clorato de potássio e à potassa cáustica, Barbicane, temendo possíveis atrasos do trajeto, mandou carregar uma quantidade suficiente para renovar o oxigênio e absorver o ácido carbônico durante dois meses. Um aparelho extremamente engenhoso, de funcionamento automático, encarregava-se de dar ao ar as suas qualidades vivificantes e de purificá-lo de forma completa. Logo estava pronto o projétil, e só faltava metê-lo no fundo do columbiad. Operação cheia de dificuldades e de perigos.

O enorme obus foi então levado para o cimo da Colina das Pedras. Ali, poderosos guindastes levantaram-no e mantiveram-no suspenso por cima do poço de metal. Foi um momento palpitante. Se as correntes se quebrassem com aquele enorme peso, a queda de tal massa teria certamente provocado a inflamação do algodão pólvora.

Felizmente, nada disso se passou e algumas horas mais tarde o vagão-projétil descia suavemente para a alma do canhão, repousava sobre a camada de piróxilo, um verdadeiro cobertor fulminante. A sua pressão não teve outro efeito senão o de calcar mais fortemente a carga do columbiad.

- Perdi, sou forçado a admitir - disse o Capitão Nicoles, entregando ao Presidente Barbicane uma quantia aproximada de três mil dólares.

Barbicane não queria receber aquele dinheiro da parte de um companheiro de viagem, mas teve de ceder perante a obstinação do capitão, que queria cumprir todos os seus compromissos antes de deixar a Terra.

- Agora - disse Michel Ardan - só me resta desejar-lhe uma coisa.

- Que coisa? - perguntou Nicoles.

- É que perca as outras duas apostas! Desse modo temos a certeza de não ficarmos pelo caminho.

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