Capítulo XII - Michel Ardan resolve pendência de honra

Enquanto os preparativos para o duelo eram discutidos entre o presidente e o capitão, que indicava ser terrível e selvagem, no qual cada um dos adversários se entregaria a uma verdadeira caça ao homem, Michel Ardan descansava das fadigas do triunfo. Descansar não era a expressão justa, pois as camas americanas podem rivalizar em dureza com as mesas de mármore ou de granito.

Ardan dormia bastante mal, voltando-se e tornando a voltar-se entre as toalhas que lhe serviam de lençóis, e pensava em instalar uma cama mais confortável que aquela no seu projétil, quando um ruído violento o arrancou aos seus sonhos. Pancadas desordenadas abalavam a porta. Pareciam ser desferidas por um instrumento de ferro. Gritos formidáveis misturavam-se com aquelas pancadas na porta, demasiadamente matinais.

- Abre! - gritavam - Pelo amor de Deus, abre depressa!

Ardan não tinha qualquer razão para aquiescer a um pedido feito de maneira tão ruidosa. No entanto, levantou-se e abriu a porta no momento em que esta ia ceder aos esforços do obstinado visitante. O secretário do Clube do Canhão entrou de repente no quarto. Uma bomba não teria entrado com menos cerimônia.

- Ontem à noite - exclamou abruptamente - o nosso presidente foi publicamente insultado durante a assembléia. Provocou o seu adversário, que é, nem mais, nem menos, o Capitão Nicoles. Batem-se esta manhã no bosque de Skersnaw! Soube tudo pela boca do próprio Barbicane! Se ele for morto, os nossos projetos ficam aniquilados! É preciso impedir tal duelo. Ora, existe um único homem no mundo pode ter suficiente domínio sobre Barbicane para detê-lo, e esse homem é Michel Ardan.

Enquanto J. T. Maston falava, Michel Ardan, sem interrompê-lo, tinha vestido as suas largas calças, e menos de dois minutos depois, os dois amigos corriam pelas ruas de Tampa.

Foi durante essa rápida correria que Maston pôs Ardan ao corrente da situação. Disse-lhe quais eram as verdadeiras causas da inimizade de Barbicane e de Nicoles - porque essa inimizade era de velha data - quais os motivos que até então, graças a amigos comuns, tinham impedido o presidente e o capitão de se encontrarem frente a frente; acrescentou que se tratava unicamente de uma rivalidade entre couraças e projéctis e que a cena da assembléia fora apenas uma ocasião durante muito tempo procurada por Nicoles para satisfazer antigos rancores.

Nada mais terrível do que esses duelos particulares ao modo americano, durante os quais os dois adversários se procuram através das matas, se espreitam no canto dos bosques como animais selvagens. Em momentos assim é que os adversários devem invejar as qualidades maravilhosas tão naturais nos índios das planícies, a sua rápida inteligência e engenhosa astúcia, o seu instinto para encontrar rastros e sinais do inimigo. Um erro, uma hesitação, um passo em falso podem conduzir à morte. Nesses encontros, os ianques fazem-se muitas vezes acompanhar pelos seus cães, e, simultaneamente nos papéis de caçadores e caça, perseguem-se durante horas.

- Que diabo de pessoas são vocês? - exclamou Michel Ardan, quando o seu companheiro lhe descreveu com muita energia toda essa encenação.

- É assim que nós somos assim - respondeu modestamente J. T. Maston - Mas apressemo-nos.

Michel Ardan e Maston correram através da planície, ainda úmida do orvalho, atravessaram plantações de arroz e pequenos rios, se meteram por atalhos, mas mesmo assim não conseguiram atingir antes das cinco horas e meia o bosque de Skersnaw. Barbicane devia ter transposto a sua orla há cerca de meia hora.
Viram um velho lenhador ocupado em fazer feixes com ramos de árvores abatidos pelo seu machado.

- Viu entrar no bosque um homem armado com uma espingarda; Barbicane... O meu melhor amigo?

O digno secretário do Clube do Canhão pensava, ingenuamente, que o seu presidente devia ser conhecido por todos. O lenhador parecia não compreendê-lo.

- Um caçador - disse então Michel Ardan.

- Um caçador? Sim - respondeu o lenhador.

- Há muito tempo?

- Há mais ou menos uma hora.

- Tarde, demais! - exclamou Maston.

- E ouviu tiros de espingarda? - perguntou Michel Ardan.

- Não.

- Nem um só?

- Nem um. Esse caçador parece não estar fazendo boa caçada.

- Que fazer? - disse Maston.

- Podemos entrar no bosque e correremos o risco de apanhar uma bala que não nos é destinada.

- Ali!  - exclamou Maston com uma expressão que não enganava - prefiro dez balas na minha cabeça do que uma só na cabeça de Barbicane.

- Então, em frente! - disse Ardan, apertando o ombro do seu companheiro.

Alguns segundos mais tarde, os dois amigos desapareciam no mato. Era um emaranhado de árvores muito espessas, feito de ciprestes gigantes, sicômoros, oliveiras, tamarindos, tulipeiros, carvalhos e de magnólias. Essas diversas árvores emaranhavam os seus ramos numa mistura inextricável, sem permitir que a vista se estendesse ao longe. Michel Ardan e Maston caminhavam um perto do outro, passando silenciosamente através das ervas altas, abrindo caminho através das trepadeiras vigorosas, interrogando com o olhar os arbustos ou os ramos perdidos na sombria espessura da folhagem e esperando a cada passo a temível detonação das espingardas.

Quanto aos rastros que Barbicane devia ter deixado da sua passagem através do bosque, era-lhes impossível reconhecê-los. Eles caminhavam como cegos pelos caminhos mal desbravados, nos quais um índio teria detectado sem hesitação a pista do seu adversário.

Após uma hora de vãs pesquisas, os dois companheiros detiveram-se. A sua inquietação redobrava a cada segundo.

- Tudo já deve ter acabado - disse Maston, desencorajado - Um homem como Barbicane não podia ter usado astúcia contra o seu inimigo, nem preparado qualquer armadilha, nem feito qualquer manobra. É demasiado franco. Demasiado corajoso. Foi em frente, direto ao perigo, e chegou sem dúvida bastante distante do lenhador para que o vento tenha levado até ele a detonação de uma arma.

- Mas nós. Nós. - disse Michel Ardan - Desde a nossa entrada no bosque, teríamos ouvido...

- E se chegamos tarde demais! - exclamou J. T. Maston, com uma expressão de desespero.

Michel Ardan não achou nada para responder; Maston e ele continuaram o caminho interrompido. De tempos a tempos, soltavam grandes gritos; chamavam quer Barbicane quer Nicoles; mas nem um nem outro dos dois adversários respondeu à sua chamada. Alegres bandos de pardais, despertos pelo ruído, desapareciam por entre as ramadas, e alguns gamos assustados fugiam precipitadamente pelo meio do mato.

A procura prolongou-se ainda durante uma hora mais. A maior parte do bosque já tinha sido explorada. Nada denunciava a presença dos contendores. Era de por em dúvida a afirmação do lenhador, e Ardan ia renunciar a prosseguir durante mais tempo um reconhecimento inútil quando, de repente, Maston o deteve.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

- Silêncio! - disse ele - Alguém está ali.

- Alguém? - inquiriu Michel Ardan.

- Sim, um homem! Parece imóvel. Mas não tem a espingarda nas mãos. Que faz ele?

- Mas você o reconhece? - perguntou Michel Ardan, cuja vista não o ajudava nessas ocasiões.

- Sim, sim - respondeu Maston. - Está voltando.

- E é?...

- O Capitão Nicoles!

- Nicoles! - exclamou Michel Ardan, que sentiu um violento aperto no coração.

- Nicoles desarmado! Não tem então nada a recear do seu adversário?

- Vamos ter com ele - disse Michel Ardan - assim, saberemos o que aconteceu.

Ele e o seu companheiro ainda não tinham dado cinquenta passos quando pararam para examinar mais detidamente o capitão. Imaginavam ir encontrar um homem sedento de sangue e todo entregue aos seus pensamentos de vingança! Ao vê-lo, ficaram totalmente, espantados.
Uma faixa de malha apertada estendia-se entre dois tulipeiros, e, no meio dessa rede, um passarinho, com as asas apanhadas nas malhas, debatia-se soltando pios lastimosos. O caçador de pássaros que ali colocara aquela rede inextricável não era um ser humano, mas, sim, uma aranha venenosa comum na região, do tamanho de um ovo de pomba e munida de patas enormes. O horroroso animal, no movimento de se precipitar sobre a sua vítima, tivera de retroceder e procurar asilo nos ramos altos dos tulipeiros, pois um inimigo temível viera ameaçá-lo por sua vez.

Realmente, o Capitão Nicoles, com a espingarda por terra, esquecendo os perigos da sua situação, ocupava-se em libertar o mais delicadamente possível a vítima apanhada entre as malhas da teia da monstruosa aranha. Quando terminou, deu a liberdade ao passarinho, que bateu alegremente as asas e desapareceu. Nicoles, enternecido, viu-o fugir através dos ramos, e de súbito ouviu estas palavras pronunciadas com voz comovida:

- O senhor é um homem corajoso.

Voltou-se. Michel Ardan encontrava-se em frente dele, repetindo em todos os tons:

- E um homem gentil.

- Michel Ardan! - exclamou o capitão - Que vem fazer aqui, senhor?

- Apertar-lhe a mão, Nicoles, e impedi-lo de matar Barbicane ou de ser morto por ele.

- Barbicane - exclamou o capitão - que eu procuro há duas horas sem o encontrar. Onde se esconde ele?

- Nicoles! - disse Michel Ardan - Isto não é delicado. É preciso respeitar sempre o adversário; esteja tranquilo: se Barbicane estiver vivo, nós o encontraremos. Por outro lado, é Michel Ardan quem lhe diz que não haverá qualquer duelo entre os dois.

- Entre o Presidente Barbicane e eu - respondeu gravemente Nicoles - existe uma tal rivalidade que só a morte de um de nós...

- Vamos! Vamos! - replicou Michel Ardan - homens como vocês dois podem ter-se detestado, mas têm de passar a estimar-se. Não se baterão.

- Bater-me-ei, senhor.

- Não.

- Capitão - disse então J. T. Maston, muito comovido - Eu, sou amigo do presidente, sou como se fosse ele próprio; se quer absolutamente matar alguém, dispare sobre mim, que será exatamente o mesmo.

- Senhor - disse Nicoles apertando convulsivamente a coronha da espingarda - essas brincadeiras...

- O amigo Maston não graceja e eu compreendo a sua idéia de se deixar matar em vez do homem de que é amigo! Mas nem ele nem Barbicane cairão sob as balas do Capitão Nicoles, pois tenho uma proposta a fazer aos dois rivais, uma proposta tão sedutora que eles se apressarão a aceitar.

- E qual é? - perguntou Nicoles, com visível incredulidade.

- Um pouco de paciência - replicou Ardan - só posso comunicá-lo na presença de Barbicane.

- Vamos então procurá-lo - exclamou o capitão.

Imediatamente, os três homens se puseram a caminho; o capitão, depois de ter descarregado a sua espingarda, a colocou no ombro e avançou com passos irregulares, sem nada dizer.

Durante ainda mais meia hora as pesquisas foram inúteis. Maston tinha tristes pressentimentos. Observava severamente Nicoles, pensando se o capitão não teria satisfeito os seus desejos de vingança e se o pobre Barbicane não se encontraria, ensanguentado, já sem vida, no fundo de algum talude. Michel Ardan parecia ter os mesmos pensamentos, e ambos interrogavam já com o olhar o Capitão Nicoles quando, de súbito, Maston se deteve.

O busto imóvel de um homem deitado debaixo de uma gigantesca árvore surgia a vinte passos, semi-escondido pelas folhagens.

- É ele! - disse Maston.

Barbicane não se mexia. Ardan mergulhou o seu olhar no do capitão, mas este não se mexeu. Ardan deu então alguns passos, gritando:

- Barbicane! Barbicane!

Não obteve resposta. Ardan precipitou-se para o amigo; mas, no momento em que ia agarrar-lhe o braço, deteve- se, soltando um grito de surpresa.

Barbicane, de lápis na mão, traçava fórmulas e figuras geométricas num papel, enquanto a sua espingarda, descarregada, jazia por terra.

Absorvido no seu trabalho, o sábio, esquecendo por sua vez o duelo e a vingança, nada ouvira nem ouvia.

Contudo, quando Michel Ardan pousou a mão sobre a dele, levantou-se e olhou-o com ar espantado.

- Ali! - exclamou finalmente - Descobri meu amigo, descobri os meios!

- Mas que meios?

- Meios de anular o efeito da repercussão na partida do projéctil!

- Realmente? - perguntou Michel Ardan, olhando o capitão pelo canto do olho.

- Sim! Água pura que servirá de mola... Ah, Maston - exclamou Barbicane - também aqui.

- Ele mesmo - respondeu Michel Ardan -, e permita-me que te apresente ao mesmo tempo o digno Capitão Nicoles!

- Nicoles! - exclamou Barbicane, manifestando sua surpresa - Perdão, capitão, tinha esquecido... Estou pronto...

Michel Ardan interveio sem deixar aos dois inimigos tempo de se interpelarem.

- Por Deus! - disse - ainda bem que dois valentes homens como os senhores não se encontraram mais cedo. Teríamos agora que chorar por um ou outro. Mas graças a Deus, que se meteu no caso, já não temos nada a recear. Quando se esquece o ódio para se mergulhar nos problemas de mecânica ou para pregar partidas às aranhas, é porque esse ódio não é perigoso para ninguém.

E Michel Ardan contou ao presidente a história do capitão.

- Pergunto agora - disse, concluindo - se dois seres bons como os senhores foram feitos para dilacerarem mutuamente a cabeça a tiros de espingarda?

Havia nessa situação, um pouco ridícula, alguma coisa de tão inesperado que Barbicane e Nicoles não sabiam bem que atitude manter em relação um ao outro. Michel Ardan sentiu-a bem e decidiu apressar a reconciliação.

- Meus bravos amigos - disse, deixando aparecer nos lábios o seu melhor sorriso - entre os dois nunca houve senão um mal-entendido. Nada mais. Pois bem! Para provar que está tudo acabado entre vocês, e visto que são pessoas prontas a arriscar a pele, aceitem francamente a proposta que lhes vou fazer.

- Fale - disse Nicoles.

- O amigo Barbicane julga que o seu projétil irá direitinho à Lua.

- Sim, certamente - replicou o presidente.

- E o amigo Nicoles tem a certeza de que ele voltará a cair na Terra.

- Estou certo disto - exclamou o capitão.

- Bom! - replicou Michel Ardan - Não tenho a pretensão de pô-los de acordo; mas digo-lhes muito francamente: venham comigo, e ficarão sabendo se ficamos pelo caminho.

- Hem? - exclamou J. T. Maston, estupefato.

Ao ouvirem aquela inesperada proposta, os dois rivais tinham olhado um para o outro. Observavam-se com atenção. Barbicane esperava a resposta do capitão. Nicoles as palavras do presidente.

- Então? - disse Michel Ardan no seu tom mais conciliador - Visto que não há repercussão a temer...
- Aceito! - exclamou Barbicane.

- Viva! Bravo! Hip! Hip! Hip! Hurra! - exclamou Michel Ardan, estendendo a mão aos dois adversários. - E agora, que o assunto está solucionado, meus amigos, permitam-me que os trate à francesa. Vamos almoçar.

Nesse mesmo dia, toda a América soube o que havia passado entre o Capitão Nicoles e o Presidente Barbicane, assim como o seu singular desenlace. O papel desempenhado nesse encontro pelo cavalheiresco europeu, a sua inesperada proposta, que fazia desaparecer as dificuldades, a aceitação simultânea dos dois rivais, essa conquista do continente lunar para a qual a França e os Estados Unidos iam marchar de comum acordo, tudo se reunia para aumentar mais ainda a popularidade de Michel Arden.

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