Capítulo V - O Capitão Nicoles

O público americano analisava com enorme interesse até os mais insignificantes pormenores do empreendimento do Clube do Canhão e seguia dia a dia as discussões da Comissão. Os mais simples preparativos desse grande empreendimento, as questões numéricas levantadas, as dificuldades mecânicas a resolver; em uma palavra, o “seu acionamento” apaixonava a opinião pública ao mais alto grau.

Mais de um ano iria decorrer entre o início dos trabalhos e o seu final; mas esse lapso de tempo não devia ser vazio de emoções; o lugar a escolher para a construção do canhão e do projétil, o fabrico dos moldes, a fundição do columbiad, o seu perigoso carregamento; tudo isso era mais do que o necessário para excitar a curiosidade pública. Uma vez lançado, o projétil escaparia aos olhares em poucos décimos de segundo; o que lhe sucederia depois, o modo como ele se comportaria no espaço, e de que forma atingiria a Lua, só um pequeno número de privilegiados poderia ver com os seus próprios olhos. Assim, os preparativos da experiência e os pormenores da execução é que constituiriam o verdadeiro interesse para o público em geral.

No entanto, o atrativo puramente científico do empreendimento foi de súbito superexcitado por um incidente.

Sabe-se as numerosas legiões de admiradores e de amigos que o projeto de Barbicane lhe dera. No entanto, por mais honrosa, por mais extraordinária que fosse, essa maioria não era a unanimidade. Um só homem, um só em todos os Estados Unidos, protestou contra a tentativa do Clube do Canhão; E tal é a natureza humana que Barbicane foi mais sensível a essa única voz discordante do que aos aplausos de todos os outros.

Entretanto, conhecia bem o motivo dessa antipatia, de onde partia essa inimizade solitária, porque era pessoal e de data, antiga. Aquele inimigo perseverante, nunca o presidente do Clube do Canhão o tinha visto. Felizmente, pois o encontro desses dois homens teria certamente tido más consequências. Esse rival era um sábio como Barbicane, possuidor de uma natureza orgulhosa, audaciosa, convencida, violenta, um puro ianque. Chamavam-lhe de Capitão Nicoles. Morava em Filadélfia.

Ninguém ignora a curiosa luta que se estabeleceu, durante a Guerra de Secessão, entre o projétil e a couraça dos navios blindados; aquele se destinava a perfurar esta; esta estava decidida a não se deixar perfurar. Daí adveio uma transformação radical nos diversos Estados e nos dois continentes.

A bala e a couraça lutaram com um encarniçamento sem precedentes, uma aumentando o seu volume, a outra adquirindo constantemente mais espessura. Os navios, armados de peças de artilharia formidáveis, navegavam debaixo de fogo ao abrigo da sua invulnerável carapaça. Os Merrimac, os Monitor, os Ram Tênesse, os Weckausen lançavam projéteis enormes, depois de se te- rem couraçado contra os projéteis dos outros. Faziam aos outro aquilo que não queriam que lhes fizessem, principio imoral sobre o qual se baseia toda a arte da guerra.

Ora, se Barbicane tinha sido um grande fundidor de projéteis, Nicoles fora um grande forjador de chapas para couraças. Um fundia noite e dia em Baltimore e o outro forjava dia e noite em Filadélfia. Cada um seguia uma corrente de idéias radicalmente opostas.
Logo que Barbicane inventava uma nova bala, Nicoles inventava nova couraça. O presidente do Clube do Canhão passava a vida, abrindo buracos, o capitão impedindo que eles se abrissem. Daí nasceu uma rivalidade que chegava a atingir as outras pessoas.

Nicoles aparecia nos sonhos de Barbicane sob a forma de uma couraça impenetrável contra a qual ele se ia quebrar, e Barbicane aparecia nos sonhos de Nicoles como um projéctil que o trespassava de lado a lado.

No entanto, mesmo que seguissem duas linhas divergentes, esses sábios acabariam por se encontrar, apesar de todos os axiomas da geometria; mas seria naturalmente no terreno do duelo. Felizmente para esses cidadãos tão úteis ao seu país, uma distancia de cinqüenta a sessenta milhas separava-os um do outro, e os amigos de ambos encheram esse caminho de tais obstáculos que nunca se encontraram.

Nesse momento, qual dos dois esteve levado a melhor é que não se sabia; os resultados obtidos tornavam difícil uma apreciação justa. No fim das contas, no entanto, o mais plausível era que a couraça deveria ceder à bala.

No entanto, os homens competentes tinham dúvidas. Nas últimas experiências, os projécteis cifindro-cônícos de Barbicane foram quebrar-se como alfinetes nas placas de Nicoles; nesse dia, o fundador de Filadélfia julgou-se vitorioso e passou a desprezar o seu rival; mas, quando mais tarde este substituiu as balas cônicas por simples obuses de seiscentas libras, o capitão teve de modificar a sua atitude. Realmente, esses projécteis, se bem que por uma velocidade medíocre, partiram, perfuraram, fizeram voar em pedaços as chapas do melhor metal.

Ora, estando as coisas nesse ponto, a vitória parecia dever ficar com a bala, quando a guerra acabou no próprio dia em que Nicoles terminava uma nova couraça de aço forjado! Era uma obra-prima no seu gênero; desafiava todos os projécteis do mundo. O capitão fez com que se transportasse a couraça para o polígono de Washington, desafiando o presidente do Clube do Canhão a quebrá-la. Barbicane, considerando que a paz já tinha sido assinada, não quis tentar a experiência.

Então, Nicoles, furioso, ofereceu-se para expor a sua chapa ao choque das balas mais inverossímeis, maciças, ocas, esféricas ou cônicas. Recusa do presidente, que decididamente não queria comprometer o seu último êxito.

Nicoles, ainda mais estimulado por aquela obstinação inqualificável, quis tentar Barbicane, dando-lhe de partida todas as oportunidades. Propôs, inclusive, colocar a sua chapa a duzentas jardas do canhão. Barbicane obstinou-se na sua recusa. A cem jardas? Nem sequer a setenta e cinco.

- Então, a cinqüenta - clamou o capitão pela voz dos jornais - Colocarei a minha chapa a vinte e cinco jardas e ficarei por detrás dela!

Barbicane mandou responder que, mesmo que o Capitão Nicoles se pusesse na frente da chapa ele não dispararia. Nicoles, ao saber dessa réplica, não se conteve; insinuou que a covardia era coisa indivisível, que um homem que se recusa a disparar um tiro de canhão estava, por certo, muito perto de ter medo; que, em suma, esses artilheiros que se batem a seis milhas de distância substituíam prudentemente a coragem individual pelas fórmulas matemáticas, e que, finalmente, há tanta coragem em esperar tranquilamente uma bala atrás de uma couraça, como em arremessá-la segundo todas as regras da arte.

A essas insinuações, Barbicane nada respondeu; talvez nem sequer as conhecesse, pois nessa altura os cálculos para o seu grande empreendimento absorviam-no inteiramente.
Quando Barbicane fez a sua famosa comunicação ao Clube do Canhão, a cólera do Capitão Nicoles subiu ao paroxismo. Misturava-se nele uma inveja terrível e um supremo sentimento de impotência! Como iria inventar qualquer coisa melhor que esse columbiad de novecentos pés! Que couraça poderia resistira um projétil de vinte mil libras!

Nicoles ficou primeiro aterrado, aniquilado, partido por aquele “tiro de canhão”, depois se ergueu e resolveu esmagar a proposta com o peso dos seus argumentos.

Atacou, portanto, muito violentamente os trabalhos do Clube do Canhão; escreveu numerosas cartas, que os jornais não se recusaram a publicar. Tentou demolir cientificamente a obra de Barbicane. Uma vez abertas as hostilidades, chamou em sua ajuda argumentos de toda a ordem e, para falar a verdade, muitas vezes tendenciosos e de baixo quilate.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Primeiro Barbicane foi violentamente atacado nos algarismos indicados por ele. Nicoles procurou provar por A + B a falsidade das fórmulas e acusou-o de ignorar os princípios fundamentais da balística.

Entre outros erros e segundo os seus cálculos, dizia Nicoles, era absolutamente impossível imprimir a qualquer corpo uma velocidade de doze mil jardas por segundo; sustentou, de álgebra na mão, que, mesmo com essa velocidade, um projétil tão pesado transporia os limites da atmosfera terrestre! Não atingiria sequer as oito mil léguas. Mais ainda. Dado, mas não concedido, que se pudesse conseguir tal velocidade, o obus não resistiria à pressão dos gases desenvolvidos pela inflamação de um milhão e seiscentas mil libras de pólvora, e mesmo que resistisse a essa pressão não suportaria pelo menos tal temperatura.

Certamente se fundiria à saída do columbiad e voltaria a cair como chuva de fogo sobre a cabeça dos imprudentes espectadores.

Barbicane nem sequer pestanejava ao saber desses ataques e prosseguia a sua obra.
Então, Nicoles tratou a questão focalizando outros aspectos; sem falar da sua inutilidade sob todos os pontos de vista, considerava a experiência como muito perigosa, quer para os cidadãos que viessem a autorizar com a sua presença um espetáculo tão condenável, quer para as cidades e vilas vizinhas desse deplorável canhão; fez igualmente observar que se o projétil não atingisse o seu objetivo - resultado absolutamente inalcançável! - cairia fatalmente sobre a Terra, e a queda de tal massa, multiplicada pelo quadrado da sua velocidade, poria singularmente em risco qualquer ponto do Globo. Portanto, em tais circunstâncias, e sem atacar os direitos dos cidadãos livres, tratava-se de um caso em que se tornava necessária a intervenção do Governo, uma vez que não se devia pôr em risco a segurança de todos para satisfazer os caprichos de um só.

Vê-se a que exagero de opinião chegou o Capitão Nicoles. Mas ele era o único a sustentar esse ponto de vista.

Assim, ninguém prestou atenção às suas agourentas profecias. Deixaram-no, portanto, gritar à vontade, visto que assim o desejava. Era o defensor de uma causa perdida por antecipação; ouviam-no, mas não o escutavam, e não conseguiu arrancar nenhum admirador do presidente do Clube do Canhão. Este, de resto, nem sequer se deu ao cuidado de retorquir aos argumentos do seu rival.

Nicoles, encurralado nas suas últimas trincheiras, e não podendo sequer pôr em jogo a sua integridade física em prol da sua causa, resolveu arriscar o seu dinheiro. Propôs, por- tanto, publicamente, no Enquirer de Richmond, uma série de apostas concebidas nestes termos e segundo uma proporção crescente.Apostou:

1 - Que os fundos necessários à empresa Clube do Canhão não seriam atingidos..............................1.000 dólares.

2 - Que a operação da fundição de um canhão de novecentos pés é impraticável e portanto, não ocorreria..............................2.000 dólares.

3 - Que seria impossível carregar o columbiad, e que o piróxilo se incendiaria sob a pressão do projéctil..............................3.000 dólares.

4 - Que o columbiad explodiria ao primeiro tiro..............................4.000 dólares

5 - Que o projétil não só não alcançaria uma distância de seis milhas, mas que cairia na terra uns segundos após ter sido lançado..............................5.000 dólares

Como se vê, era uma quantia importante que arriscava Nicoles apenas para sustentar a sua invencível obstinação. Apesar da importância da aposta, recebeu, a 19 de outubro, uma carta lacrada, de um soberbo laconismo, concebida nestes termos:


"Baltimore, 18 de outubro.

Aceito

Barbicane."

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