Capítulo XI - Ataque e réplica

Esse incidente parecia pôr termo à discussão. Era a palavra final e parecia não se poder encontrar melhor. No entanto, quando a agitação se acalmou, ouviram-se estas palavras pronunciadas com voz forte e severa:

- Agora que o orador deu mais do que deveria dar à sua fantasia, quererá voltar ao seu assunto, expondo menos teorias, e discutir a parte prática da sua expedição?

Todos os olhares se dirigiram para a personagem que assim falava. Era um homem magro, seco, de rosto enérgico e com uma barba cortada à americana, que se adensava debaixo do queixo. No meio da agitação que de vez em quando se produzia na multidão, ele tinha pouco a pouco conseguido chegar a primeira fila dos espectadores. Ali, de braços cruzados e olhar brilhante e ousado, fixava imperturbavelmente o herói da assembléia. Depois de ter formulado o seu pedido, calou-se e não pareceu ficar nada perturbado pelos milhares de olhos fixos nele, nem pelo murmúrio desaprovador provocado pelas suas palavras. A resposta fazia-se esperar e ele voltou a fazer a pergunta, com o mesmo tom preciso, e depois acrescentou:

- Estamos aqui para nos ocuparmos da Lua e não da...

- Tem razão, senhor - respondeu Michel Ardan, interrompendo-o - a discussão afastou-se um tanto do assunto principal. Voltemos à Lua.

- Senhor - replicou o desconhecido – pretende habitar o nosso satélite. Pois bem, se existem habitantes na Lua, eles devem viver sem respirar, pois (e previno-o no seu interesse) não há uma única molécula de ar na superfície da Lua.

Ao ouvir esta afirmação, Ardan endireitou a sua juba fulva; compreendeu que a luta ia travar-se com aquele homem no mais vivo da questão. Olhou-o fixamente por sua vez e
disse:

- Sim? Não há ar na Lua! E quem afirmou isto?

- Os sábios.

- Senhor - respondeu Michel - sem qualquer brincadeira, eu tenho o maior respeito pelos que sabem, mas um profundo desdém pelos que não sabem.

- Conhece alguns que pertençam a essa última categoria?

- Claro! Na França existem alguns que afirmam que “matematicamente” o pássaro não pode voar, e outros cujas teorias demonstram que o peixe não foi feito para viver na água.

- Não se trata desses, senhor, e eu poderia citar em apoio da minha afirmação nomes que o senhor não recusaria.

- Nesse caso, senhor, iria embaraçar um pobre ignorante que, de resto, não deseja mais do que instruir-se.

- Por que aborda então questões científicas se não as estudou? - perguntou o desconhecido, com bastante rudeza.

- Por quê? - replicou Michel Ardan - Pela mesma razão que aquele que não desconfia do perigo é sempre arrojado! É verdade que nada sei, mas é precisamente a minha fraqueza que faz a minha força.

- A sua fraqueza chega à loucura - respondeu o desconhecido, manifestando mau humor.

- Tanto melhor - replicou o francês - se a minha loucura me levar à Lua!

Barbicane e os seus colegas devoravam com o olhar aquele intruso que tão ousadamente se opunha ao empreendimento. Ninguém o conhecia, e o presidente, pouco tranquilo pelas consequências daquela discussão, olhava o seu novo amigo com certa apreensão. A multidão estava atenta e seriamente inquieta, pois essa luta tinha como resultado chamar a atenção sobre os perigos ou mesmo sobre as verdadeiras impossibilidades da expedição.

- Senhor - continuou o adversário de Michel Ardan - são numerosas e indiscutíveis as razões que provam a ausência de qualquer atmosfera na Lua. Direi prioritariamente que se essa atmosfera jamais existiu deve ter sido subtraída pela Terra. Mas prefiro opor-lhe fatos irrecusáveis.

- Oponha, senhor - respondeu Michel Ardan, com uma delicadeza perfeita. - Oponha tudo quanto lhe agradar!

- Sabe - disse o desconhecido - que, quando os raios luminosos atravessam um meio como o ar são desviados da linha reta, ou, em outros termos, sofrem uma refração. Pois bem! Quando as estrelas são ocultas pela Lua, nunca os seus raios, rasando as margens do disco lunar, sentiram o menor desvio ou deram o mais ligeiro indício de refração. Dai a conclusão evidente de que a Lua não é envolvida por uma atmosfera.

Todos olharam para o francês, pois, uma vez admitida a observação, as consequências seriam perfeitamente rigorosas.

- Realmente - respondeu Michel Ardan - eis o seu melhor argumento, para não dizer o único, e um sábio sentir-se-ia talvez embaraçado em lhe responder; eu dir-lhe-ei apenas que esse argumento não tem valor absoluto, pois supõe o diâmetro angular da Lua perfeitamente determinado, o que não é assim. Mas passemos à frente, e diga-me, meu caro senhor, se admite a existência de vulcões na superfície da Lua?

- De vulcões extintos, sim; ativos, não,

- No entanto, deixe-me acreditar, sem ultrapassar os limites da lógica, que esses vulcões estiveram em atividade durante certo período!

Isto é certo; mas, como eles podiam fornecer por si próprios o oxigênio necessário para a combustão, a sua erupção não prova de modo nenhum a existência de uma atmosfera lunar.

- Adiante então - respondeu Michel Ardan - e deixemos de lado esse gênero de argumentos para passarmos às observações diretas. Mas previno-o de que vou citar nomes daqui pra frente.

- Cite.

- Bem. Em 1715, os astrônomos Louville e Halley, observando o eclipse do dia 3 de maio, notaram certas cintilações de uma natureza estranha. Esses jatos de luz, rápidos e frequentes, foram atribuídos por eles a tempestades que se desencadeavam na atmosfera da Lua.

- Em 1715 - replicou o desconhecido - os astrônomos Louville e Halley tomaram por fenômenos lunares fenômenos puramente terrestres, tais como bólides ou outros, que se produziam na nossa atmosfera. Foi o que responderam os sábios ao enunciado desses fatos, e isso é o que eu também respondo.

- Adiante - respondeu Ardan, sem se mostrar perturbado com a resposta - Herschell, em 1787, não observou um grande número de pontos luminosos na superfície da Lua?

- Sem dúvida; mas o próprio Herschell não desvendou a origem desses pontos luminosos.

- Concluiu daí que houvesse uma atmosfera lunar - disse Michel Ardan.

- Acrescento hábeis observadores: aqueles que mais arduamente estudaram o astro noturno, Os senhores Beer e Moedler, estão de acordo comigo sobre a absoluta falta de ar na sua superfície.

Deu-se um movimento na assistência, que pareceu convencer-se com os argumentos daquela singular personagem

- Sigamos adiante – Ardan rebate, com a maior calma - e cheguemos a tempos mais atuais. Um hábil astrônomo francês, o senhor Laussedat, observando o eclipse de 18 de julho de 1860, verificou que as extremidades do crescente solar estavam arredondadas e truncadas. Ora, esse fenômeno só pode ter sido produzido por um desvio dos raios do Sol através da atmosfera da Lua, e não existe outra explicação.

- Mas isso é verdade? - perguntou vivamente o desconhecido.

- Absolutamente verdade.

Um movimento inverso levou de novo a multidão para o seu herói favorito, cujo adversário ficou silencioso. Ardan voltou a falar, e, sem se envaidecer com a sua última vantagem, disse simplesmente:

- Meu caro senhor, não podemos nos pronunciar de modo absoluto em relação à existência de atmosfera na superfície da Lua; mas atualmente a ciência, em geral, admite que ela existe e que essa atmosfera é provavelmente pouco densa e bastante sutil.

- Não nas montanhas - replicou o desconhecido, que não queria perder a partida.

- Não, mas no fundo dos vales, e não ultrapassando em altura algumas centenas de pés.

- Em todo o caso, fará bem em tomar precauções, pois esse ar será terrivelmente rarefeito.

- Meu caro senhor, haverá sempre ar suficiente para um homem só; de resto, uma vez chegado lá em cima, tentarei economizá-lo o mais possível e só respirarei nas grandes ocasiões!

Uma formidável gargalhada  chegou aos ouvidos do misterioso interlocutor, que estendeu o olhar pela multidão, enfrentando-a com orgulho.

- Portanto - continuou Michel Ardan, com um ar descontraído - já que estamos de acordo sobre a probabilidade da existência de certa atmosfera, vemo-nos forçados a admitir a presença de certa quantidade de água. É uma consequência que muito me alegra. De resto, meu amável contraditor, permita-me que lhe faça ainda uma observação. Nós só conhecemos um dos lados da Lua, e se ela tem pouco ar no lado que nós vemos pode ser que tenha muito do outro lado.

- E por que razão?

- Porque a Lua, sob a ação da atração terrestre, tomou a forma de um ovo, que nós vemos da extremidade menor. Daí essa consequência, devida aos cálculos de Hansen, de que o seu centro de gravidade se encontra situado no outro hemisfério. Daí a conclusão de que todas as massas de ar e de água devem ter sido arrastadas para a outra face do nosso satélite nos primeiros dias da sua criação.

- Pura fantasia! - exclamou o desconhecido.

- Não ! Pura teoria, que se apoia nas leis da mecânica e que me parece difícil refutar. Apelo, portanto, para esta assembléia e ponho a questão de saber se a vida, tal como existe na Terra, é possível à superfície da Lua!

Trezentos mil ouvintes aplaudiram ao mesmo tempo a sua proposta. O adversário de Michel queria continuar falando mas já não conseguia fazer-se ouvir. Os gritos e as ameaças caíam sobre ele como uma saraivada.

- Basta! Basta! - diziam uns.

- Expulsem este intruso! - repetiam outros.

- Fora! Fora! - exclamava a multidão, irritada. No entanto, ele, firme, agarrado ao estrado, não se mexia e deixava passar a tempestade, que teria tomado proporções formidáveis se Michel Ardan não a tivesse apaziguado com um gesto. Era demasiadamente cavalheiro para abandonar o seu adversário em tais extremos.

- Deseja acrescentar mais algumas palavras? - perguntou- lhe, no tom mais gracioso.

- Sim - respondeu o desconhecido, com irritação – ou, pensando bem, não; uma só: para perseverar na empresa é preciso que seja...

- Imprudente! Como pode tratar-me assim, a mim, que pedi ao meu amigo Barbicane, para que o projétil fosse cilindro-cônico, a fim de não andar em círculos na viagem, à maneira dos esquilos?

- Mas infeliz a formidável repercussão do tiro vai fazê-lo em pedaços logo à partida!

- Meu caro contraditor: acaba de mencionar a verdadeira e única dificuldade; no mentanto, acredito demais no gênio industrial dos americanos para pensar que eles não a possam resolver!

- E o calor desenvolvido pela velocidade do projétil ao atravessar as camadas da atmosfera?

- As paredes do projétil são espessas e eu atravessarei rapidamente a atmosfera.

- Mas os víveres? E a água?

- Calculei que Poderia levar víveres para um ano e a travessia durará apenas quatro dias.

- E ar para respirar durante o caminho?

- Fabricá-lo-ei por meio de processos químicos.

- E a queda na Lua, se alguma vez lá chegar?

- Será seis vezes menos rápida do que uma queda na Terra, visto que a gravidade é seis vezes menor na superfície da Lua.

- Mas mesmo assim será suficiente para o espatifar como se fosse de vidro!

- E quem me impedirá de retardar a minha queda por meio de foguetes convenientemente dispostos e inflamados na ocasião oportuna?

- Mas, enfim, suponho que todas as dificuldades sejam resolvidas, todos os obstáculos aplainados reunindo todas as probabilidades em seu favor, admitindo que chegue à Lua
são e salvo, como voltará?

- Não voltarei!

Ao ouvir aquela resposta, que pela sua simplicidade, raiava o sublime, a multidão ficou muda. Mas o seu silêncio foi mais eloquente do que teriam sido os seus gritos de entusiasmo. O desconhecido aproveitou para protestar uma última vez.

- Morrerá infalivelmente - exclamou - e a sua morte, que terá sido a morte de um insensato, nem sequer servirá de coisa alguma para a ciência.

- Continue, meu generoso desconhecido; verdadeiramente os seus prognósticos são muito agradáveis.

- Ah! Isto é demais! - exclamou o adversário de Michel Ardan. A assembléia foi concluída. A platarfoma foi então removida, de repente. Por vezes, o estrado parecia balançar como um navio sobre as ondas. Mas os dois heróis da assembléia tinham pés de marinheiro; não vacilaram e o seu barco chegou sem avarias ao porto de Tampa. 

Michel Ardan conseguiu fugir aos últimos abraços dos seus vigorosos admiradores; escapou-se para o Hotel Franklin. Entretanto, uma cena curta tinha lugar entre a personagem misteriosa e o presidente do Clube do Canhão.

- Venha - disse num tom seco.

O seu antagonista seguiu-o até o cais, e em breve os dois se encontraram sozinhos.

- Quem é o senhor? - perguntou Barbicane.

- O Capitão Nicoles.

- Já o suspeitava. Até agora, o acaso nunca o tinha posto no meu caminho...

- Vim propositadamente para isto!

- Insultou-me Publicamente!

- E hei de justificar esse insulto. Agora mesmo.

- Não. Desejo que tudo se passe estritamente entre nós. Existe um bosque situado a três milhas de Tampa: o bosque Skernaw. Conhece-o?

- Conheço.

- Agrada-lhe penetrar lá bem cedo, às cinco horas da manhã, por um dos lados?

- Sim, se à mesma hora o senhor lá penetrar pelo outro.

- E não esquecerá a sua espingarda? - perguntou Barbicane

- Assim como o senhor não esquecerá a sua - respondeu Nicoles.

Depois destas palavras friamente pronunciadas, o Presidente do Clube do Canhão e o capitão separaram-se.

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