Capítulo X - A Assembléia

No dia seguinte, o astro do dia levantou-se muito tarde para a impaciência pública. Acharam-no preguiçoso, para um Sol que devia iluminar semelhante festa. Barbicane, temendo as perguntas indiscretas para Michel Ardan, teria desejado reduzir os seus ouvintes a um pequeno número de adeptos, aos seus colegas, por exemplo. Mas era o mesmo que tentar pôr um dique no Niágara. Teve, portanto, de renunciar ao seu projeto e deixar o seu novo amigo correr os riscos de uma conferência pública.

A nova sala da Bolsa de Tampai foi considerada insuficiente para a cerimônia, apesar das suas dimensões colossais, pois a reunião projetada tomava as proporções de uma verdadeira assembléia pública.

O local escolhido foi então uma vasta planície situada fora da cidade; em poucas horas conseguiram abrigá-la contra os raios do Sol; os navios do porto com as suas velas, os seus mastros e os seus aprestos, forneceram o material necessário para a construção de uma gigantesca barraca. Em breve, um imenso toldo se estendia sobre a planície calcinada defendendo-a dos ardores do Sol.

Ali, trezentas mil pessoas encontraram lugar e enfrentaram durante horas uma temperatura sufocante, esperando a chegada do francês. Dessa multidão de espectadores a terça parte podia ver e ouvir; um segundo terço via mal e não ouvia; quanto ao terceiro, não via nem ouvia nada.

Contudo, não foi esse terço o mais avaro em prodigalizar os seus aplausos.
Às três horas, Michel Ardan fez a sua aparição, acompanhado pelos principais membros do Clube do Canhão. Dava o braço direito ao Presidente Barbicane e o esquerdo a J. T. Maston, mais radioso que o Sol em pleno meio-dia, e quase tão rutilante. Ardan subiu em um sobrado de madeira pouco erguido do chão, do alto do qual o seu olhar abarcava uma imensa extensão de chapéus pretos. Não parecia nada embaraçado nem fazia poses. Estava ali como em casa; alegre, familiar, amável. Às aclamações que o acolheram respondeu com uma saudação graciosa; depois, com a mão, pediu silêncio. Tomou então a palavra e exprimiu-se, em um inglês muito correto, nestes termos:

- Senhores, apesar de estar muito calor, vou roubar-lhes uns momentos para dar algumas explicações sobre projetos que parecem ter ganho o interesse geral. Não sou nem orador nem sábio e não contava ter de falar em público, mas o meu amigo Barbicane disse-me que isto lhes daria prazer e eu prontifiquei-me a fazê-lo.

Escutem-me, portanto, com seiscentos mil ouvidos e desculpe os erros do arador.

Este começo nada cerimonioso agradou muito aos assistentes, que manifestaram o seu agrado com um murmúrio de satisfação.

- Senhores - continuou Michel Ardan - lembrem-se de que não é proibido qualquer sinal de aprovação ou de desaprovação. Dito isto, vou começar. Não esqueçam que estão tratando com um ignorante e que a sua ignorância vai tão longe que chega a ignorar até mesmo as dificuldades. Pareceu-me, portanto, que era uma coisa fácil, simples e natural arranjar passagem num projéctil e partir para a Lua. Essa viagem devia fazer-se mais cedo ou mais tarde, e quanto ao modo de locomoção adotado, segue simplesmente a lei do progresso.

“O homem começou por viajar a quatro patas, depois, um belo dia, sobre os dois pés, depois de carroça, em seguida de carruagem, depois navios de carga, estradas de ferro; pois bem! O projéctil é o meio de transporte do futuro, e a bem dizer os planetas não são mais que projécteis, simples balas de canhão lançadas pela mão do Criador.”

“Mas voltemos ao nosso veiculo. Alguns dos senhores julgaram que a velocidade que lhe séria imprimida é excessiva; mas não se verifica isso; todos os astros o superam em rapidez, e a própria Terra, no seu movimento de translação em redor do Sol, leva-nos três vezes mais depressa. Eis alguns exemplos. Peço-vos apenas licença para me exprimir contando em léguas, pois não estou muito familiarizado com as medidas americanas e receio atrapalhar-me nos meus cálculos.”

O pedido pareceu simples e não representava qualquer dificuldade. O orador retomou o seu discurso:

- Eis, senhores, a velocidade dos diferentes planetas. Sou obrigado a confessar que, apesar da minha ignorância, conheço exatamente esse pequeno pormenor astronômico; mas, antes de se terem passado dois minutos, ficarão sabendo tanto quanto eu. Com efeito, Netuno percorre cinco mil léguas por hora; Urano, oito mil, oitocentas e cinquenta e oito; Júpiter, onze mil seiscentas e setenta e cinco; Marte, vinte e duas mil e onze; a Terra, vinte e sete mil quinhentas; Vênus, trinta e duas mil cento e noventa; Mercúrio, cinquenta e duas mil quinhentas e vinte; certos cometas, um milhão e quatrocentas mil léguas! Quanto a nós, verdadeiros vagabundos, pessoas pouco apressadas, a nossa velocidade não ultrapassará as nove mil e novecentas léguas, e irá sempre decrescendo! Pergunto-lhes se há razão para se extasiarem com isso, e se não é evidente que essa velocidade será em breve ultrapassada por outras ainda maiores, do qual a luz e a eletricidade serão provavelmente os agentes-mecânicos?

Ninguém pareceu pôr em dúvida esta afirmação de Michel Ardan.

- Meus caros ouvintes - continuou ele - por crer em certos espíritos limitados (é o qualificativo que lhes convém), a humanidade será encerrada num círculo que não saberá transpor, e condenada a vegetar neste globo sem nunca poder lançar-se para os espaços planetários. Não é nada disso! Nós iremos à Lua, aos planetas, às estrelas, como hoje se vai de Liverpool a Nova Iorque, facilmente, com rapidez e segurança, e em breve o oceano atmosférico será atravessado, assim como os oceanos da Lua. A distância é apenas uma palavra relativa e acabará por ser reduzida a zero.

A multidão, apesar de predisposta a favor do herói francês, ficou um pouco perplexa ao ouvir tão audaciosa teoria. Michel Ardan pareceu compreender isso.

- Não parecem convencidos, meus estimados anfitriões - continuou com um sorriso amável - Pois bem. Raciocinem comigo um pouco. Sabem quanto tempo seria necessário a um trem expresso para atingir a Lua? Trezentos dias. Não mais. Um trajeto de oitenta e seis mil quatrocentas e dez léguas, o que é isto? Nem sequer nove vezes a volta a Terra; não existem marinheiros nem viajantes um pouco desembaraçados que não tenham percorrido mais do que isso durante a sua existência? Pensei que só levarei oitenta e sete horas no caminho! Julgam que a Lua fica muito afastada da Terra e que é preciso pensar duas vezes antes de tentar a aventura. Mas que diriam então se tratasse de ir a Netuno, que gravita a mil cento e quarenta e sete milhões de léguas. Eis uma viagem que poucas pessoas poderiam fazer, mesmo que custasse apenas cinco soldos por quilômetro! O próprio Barão de Rothschild, com os seus milhares de milhões, não teria com que pagar o seu lugar, e por falta de quarenta e sete milhões ficaria pelo caminho!

Esta maneira de argumentar pareceu agradar muito à multidão; de resto, Michel Ardan, consciente do que fazia, lançava-se na sua aventura com um impulso soberbo. Sabia que estava sendo avidamente escutado e sentiu uma admirável segurança.

- Pois bem, meus amigos, essa distância de Netuno ao Sol não é ainda nada se comparar à das estrelas; com efeito, para avaliar o afastamento desses astros, é preciso entrar nessa numeração deslumbrante em que o menor número é de nove algarismos, e tomar por unidade os milhares de milhões. Peço-lhes perdão por estar sendo tão prolixo sobre esta questão, mas ela é de um interesse palpitante. Ouçam e julguem! Alfa de Centauro está a oito mil milhares de milhões de léguas, Vega a cinquenta mil milhares de milhões, Sírio a cinqüenta mil milhares de milhões, Arturo a cinqüenta e dois mil milhares de milhões, a Estrela Polar fica a cento e dezessete mil hares de milhões, Cabra a cento e setenta mil milhares de milhões, as outras estrelas a milhares de milhões e milhares de bilhões de léguas! E ainda há quem fale da distância que medeia os planetas do Sol. E afirmariam que essa distância existe! Erro, Falsidade. Aberração dos sentidos! Querem saber o que eu penso deste mundo que começa no astro radioso e acaba em Netuno? Querem conhecer a minha teoria? É muito simples! Para mim, o mundo solar é um corpo sólido, homogêneo; os planetas que o compõem comprimem-se, tocam-se, aderem e o espaço existente entre eles é como o espaço que separa as moléculas do metal mais compacto: prata, ferro, ouro ou platina. Tenho, portanto, o direito de afirmar e repito com uma convicção que os convencerá a todos: a distância é uma palavra vã, a distância nem sequer existe!

- Bem dito! Bravo! Viva! - exclamou a multidão em uma só voz, eletrizada pelos gestos, pela expressão do orador, pela ousadia das suas concepções.

- Não - exclamou J. T. Maston, mais enérgico do que os outros -, a distância não existe!

E, levado pela violência dos seus movimentos, pelo impulso do seu corpo, que teve dificuldade em dominar, quase caiu do estrado abaixo, mas conseguiu recuperar o equilíbrio, evitando uma queda que lhe teria provado brutalmente que a distância não era uma palavra vã. Depois o discurso do empolgante orador continuou:

- Meus amigos, penso que esta questão se encontra agora resolvida. Não convenci a todos, pois fui tímido nas minhas demonstrações, fraco nos meus argumentos, mas a culpa é da insuficiência dos meus estudos teóricos. Seja como for, repito, a distância da Terra ao seu satélite é realmente pouco importante e indigna de preocupar um espírito sério. Creio que não me estou antecipando muito ao dizer que em breve serão estabelecidos comboios de projécteis, nos quais se fará comodamente a viagem da Terra à Lua. Não haverá nem choques, nem sacudidelas, nem descarrilamentos a recear, e o fim da viagem será atingido rapidamente, sem fadigas, em linha reta, “a vôo de abelha”, para utilizar a linguagem dos seus caçadores. Antes de vinte anos, metade dos habitantes da Terra terá visitado a Lua!

- Viva! Viva Michel Ardan! - gritaram os circunstantes, mesmo os menos convencidos.

- Viva Barbicane! - respondeu modestamente o orador.

Este ato de reconhecimento para o promotor do empreendimento foi acolhido por aplausos unânimes.

Fonte: http://jv.gilead.org.il/rpaul/

Agora, meus amigos - disse Michel, Ardan - se têm algumas perguntas a fazer-me, tentarei responder-lhes, embora certamente um pobre homem como eu ficará um pouco embaraçado.

Até aquele momento o presidente do Clube do Canhão tinha razão para estar satisfeito com a direção que tomava a discussão. Versando sobre essas teorias especulativas, Michel Ardan, arrastado pela sua viva imaginação, mostrava-se muito brilhante. Era preciso, portanto, impedi-lo de se desviar para as questões práticas, das quais se teria saído menos bem, sem dúvida nenhuma. Barbicane apressou-se a tomar a palavra, e perguntou ao seu novo amigo se pensava que a Lua ou os outros planetas fossem habitados.

- É um grande problema o que me indicas, meu digno presidente - respondeu o orador, sorrindo - contudo, se não me engano, homens de grande inteligência como Plutarco, Swedenborg, Bemardin de Saint-Pierre e muitos outros pronunciaram-se pela afirmativa. Situando-me do ponto de vista da filosofia natural, serei levado a pensar como eles; direi que nada de inútil existe neste mundo, e, respondendo à tua pergunta com outra pergunta, amigo Barbicane, direi: são os mundos habitáveis? Se o são é porque são habitados, porque o foram ou porque ainda o hão de ser.

- Muito bem! – Urrou as primeiras filas dos espectadores, cuja opinião tinha força de lei para as últimas.

- Não se pode responder com mais lógica e justeza - disse o presidente do Clube do Canhão - A questão é, portanto, esta: os mundos são habitáveis? Creio nisto, pela minha parte.

- E eu tenho a certeza - respondeu Michel Ardan.

- No entanto - replicou um dos assistentes - há argumentos contra a habitabilidade dos mundos. Seria evidentemente preciso que os princípios da vida fossem modificados.
Assim, para apenas falar de planetas, deve-se ficar queimado em uns e gelado em outros, conforme eles forem mais ou menos afastados do Sol.

- Lamento muito - respondeu Michel Ardan - não reconhecer pessoalmente o meu honrado interlocutor, mas tentarei responder-lhe. A objeção tem o seu valor, mas creio que podemos combatê-la com algum êxito, assim como todas as que se referem à habitabilidade dos mundos. Se fosse físico, diria que, se há menos calor em movimento nos planetas vizinhos do Sol, e, pelo contrário, mais nos planetas afastados, esse simples fenômeno basta para equilibrar o calor e tornar a temperatura desses mundos suportável para seres organizados como nós.

“Se eu fosse naturalista, dir-lhe-ia, como muitos sábios ilustres, que a natureza nos fornece na Terra exemplos de animais que vivem em condições bem diferentes de habitabilidade; que os peixes respiram num meio mortal para os outros animais; que os anfíbios têm uma dupla existência, bastante difícil de explicar; que certos habitantes dos mares se mantêm nas camadas de uma grande profundidade, suportando aí, sem serem esmagados, pressões de cinquenta ou sessenta atmosferas; que diversos insetos aquáticos, insensíveis à temperatura, se encontram simultaneamente nas fontes, de água a ferver e nas planícies geladas dos oceanos polares; e, por fim, que precisamos reconhecer na natureza uma diversidade nos meios de ação muitas vezes incompreensível, mas não menos real, e que vai até o Todo-Poderoso.”

“Se fosse químico dir-lhe-ia que os aerólitos, esses corpos evidentemente formados fora do mundo terrestre, revelaram quando analisados, traços indiscutíveis de carbono; que essa substância apenas deve a sua origem a seres organizados, e que, segundo as experiências de Reichenbach, ela deve ter sido necessariamente “animalizada”.

“Por fim, se fosse teólogo, dir-lhe-ia que a Redenção divina parece, segundo São Paulo, ter sido aplicada não apenas à Terra mas a todos os mundos celestes. Todavia não sou teólogo, nem químico, nem naturalista, nem físico. Assim, na minha perfeita ignorância das grandes leis que regem o Universo, limito-me a responder: não sei se os mundos são habitados, e porque não sei é que vou lá ver!
Teria o adversário das teorias de Michel Ardan argumentos para apresentar? É impossível dizê-lo, pois os gritos da multidão impediram qualquer voz de se fazer ouvir. Quando o silêncio se restabeleceu nos grupos mais afastados, o orador, triunfante, contentou-se em acrescentar as observações seguintes:

- Pensei bem, meus estimáveis ianques, que uma questão tão importante mal é aflorada por mim; não venho aqui fazer curso algum nem defender tese sobre assunto tão vasto. Existe toda uma série de argumentos a favor da habitabilidade dos mundos. Deixo-os de lado. Permitam-me apenas que insista num ponto; às pessoas que garantem que os planetas não são habitados é preciso responder: podem ter razão, se for demonstrado que a Terra é o melhor dos mundos, mas isto não é verdade, apesar do que possa ter dito Voltaire. Tem apenas um satélite, enquanto Júpiter, Urano, Saturno e Netuno têm vários ao seu serviço, vantagem que não é nada para desdenhar. Mas o que, sobretudo torna o nosso Globo pouco confortável é a inclinação do seu eixo sobre a sua órbita. Daí a desigualdade dos dias e das noites; daí a aborrecida diversidade das estações. No nosso infeliz esferóide, faz sempre ou calor demais ou frio excessivo; gela-se no inverno e arde-se no verão; é o planeta das constipações, das corizas, dos fluxos do peito, ao passo que à superfície de Júpiter, por exemplo, em que o eixo está muito pouco inclinado, os habitantes poderiam gozar de temperaturas invariáveis; há a zona das primaveras, a zona dos verões, a zona dos outonos e a zona dos invernos perpétuos; cada habitante pode escolher o clima que mais lhe agrade e ficar durante toda a vida ao abrigo das variações da temperatura.

“Concordarão certamente que Júpiter é superior ao nosso planeta pelo menos nisto, sem falar já das revoluções anuais, que duram doze anos cada uma! Além disso, é evidente que, sob esses auspícios e nessas maravilhosas condições de existência, os habitantes desse mundo afortunado são seres superiores, que os sábios são mais sábios ou os artistas mais artistas. Que falta ao nosso esferóide para atingir tamanha perfeição? Pouca coisa! Um eixo de rotação menos inclinado sobre a sua órbita.

- Pois bem! - exclamou uma voz impetuosa - unamos os nossos esforços, inventemos máquinas e endireitemos o eixo da Terra!

Uma tempestade de aplausos saudou esta proposta, cujo autor era, como não podia deixar de ser, J. T. Maston. Era provável que o fogoso secretário se deixasse arrastar pelos seus instintos de engenheiro ao fazer aquela ousada proposta. No entanto, é preciso dizê-lo - porque é a verdade - muitos o apoiaram com os seus gritos, e, sem dúvida, se tivessem tido o ponto de apoio reclamado por Arquimedes, os americanos teriam construído uma alavanca capaz de erguer o mundo e endireitar o seu eixo. Mas o ponto de apoio era o que faltava a esses temerários mecânicos.

Entretanto, essa idéia, “eminentemente prática”, conheceu enorme êxito.

Um comentário:

  1. Não me lembrava dessa proposta no final do capítulo. Agora sei de onde surgiu essa história...

    E todas essas ideias de Michel Ardan, quase é possível acreditar nelas, de tão bem explicadas por Verne!

    Um trabalho bem feito por Velton Clarindo.

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